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Delação premiada ofende direitos fundamentais previstos na Constituição
A delação premiada é um dos instrumentos mais utilizados, atualmente, no domínio do Direito Penal. Especialmente no âmbito das varas especializadas em (combate a) crimes econômicos na Justiça Federal, são numerosos os processos que se utilizam de provas direta ou indiretamente colhidas com o emprego desse dispositivo.
Isso seria suficiente para justificar a discussão dos diversos problemas que gravitam em torno do instituto, notadamente levando em consideração os direitos e garantias fundamentais dos envolvidos. E é justamente a partir dessa perspectiva que se pretende discutir a delação premiada e sua relação de conformidade com o Texto Constitucional.
Como se sabe, a Constituição de 1988 ofereceu um generoso catálogo de direitos fundamentais. Interessa aqui a dimensão objetiva dos direitos, a qual transcende os limites subjetivos (individuais, coletivos, transindividuais) relacionados à titularidade.
Na esfera da jurisdição penal, na qual está em jogo a restrição de direitos e liberdades dos cidadãos, o devido processo legal ocupa posição de reconhecido destaque. Esse princípio constitui ideia síntese dos direitos e garantias que representam o compromisso ético firmado entre o Estado e a Sociedade no Texto Fundamental. O primeiro nível de concretização do devido processo legal ocorre, pois, na própria interpretação dos direitos e garantias fundamentais.
As normas infraconstitucionais relativas ao Direito Penal e ao Processo Penal possuem estreita relação com os direitos fundamentais. E dessa forma, portanto, desempenham importante papel na concretização do devido processo legal, agora ao nível legislativo.
Por fim, é no plano da aplicação que o princípio inscrito no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição sai da abstração para o caso concreto. É nesse momento que se compreende o real significado do mandamento “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É dizer, não se tomará a liberdade ou os bens de alguém sem que sejam respeitados os direitos fundamentais insculpidos na Constituição e na legislação que a complementa.
Portanto, discutir a delação premiada significa inseri-la no contexto da função estatal voltada ao esclarecimento de determinados fatos e cuja rigorosa observância dos direitos fundamentais relacionados com o devido processo legal é pressuposto de validade e legitimidade.
A análise dos institutos jurídicos não pode ser desconectada da realidade (texto e contexto)[1]. Assim, a verificação da constitucionalidade da delação premiada passa obrigatoriamente pelos modos de aplicação da medida. Sob esse ponto de vista, receio ser altamente duvidosa a relação de conformidade entre as normas infraconstitucionais que disciplinam a delação premiada e o texto constitucional.
O princípio da legalidade desempenha papel central para a garantia dos direitos fundamentais. Isto ninguém discute. Um dos aspectos pouco debatidos, porém, diz respeito ao fato de que o legislador atua na imposição de limites ao poder de restringir direitos fundamentais.
A Constituição atribui ao legislador o delineamento dos limites dos direitos e dos limites às restrições dos direitos: os limites dos próprios limites[2]. A lei cria procedimentos, estabelece competências ou delimita as competências já desenhadas na Constituição, estipula prazos e prescreve requisitos a serem observados[3].
No caso da delação premiada, no entanto, basta uma simples mirada sobre os dispositivos legais vigentes antes da Lei 12.850/2013 para concluir que não havia suficiente proteção legislativa em nosso ordenamento jurídico. Até a edição dessa lei, não havia definição legal precisa do instituto. Todos os dispositivos legais que a ele faziam referência o inseriam no contexto de regulamentação de outros temas[4].
De modo geral, essas normas previam a possibilidade de sensível redução da pena para o coautor ou partícipe que, através de confissão espontânea, prestasse às autoridades esclarecimentos a respeito das infrações penais e sua autoria, bem como sobre a localização e recuperação do produto do crime[5].
Nenhum desses dispositivos, porém, tratava da delação premiada com minudência, de modo a estabelecer os limites que deveriam ser observados para tutelar os direitos das partes e realizar a custódia da legalidade das provas.
A principal consequência desse vazio era a imensa e indevida margem de discricionariedade concedida aos intérpretes, especialmente aos juízes, para, em substituição ao legislador, “criar” regras ad hoc e em caráter retroativo, mesmo sem possuir legitimidade constitucional para tanto.
A Lei 12.850 de 2013 constitui o primeiro marco legal efetivo da delação premiada, não obstante a péssima redação que dá causa a uma série de dúvidas em pontos cruciais. Uma das poucas questões que ficaram claras, por força do seu artigo 3º, diz respeito à introdução da delação premiada formal e definitivamente na classe dos métodos ocultos de investigação.
Seguindo a tradição legislativa, o instituto foi denominado de “colaboração premiada”, verdadeiro eufemismo legal voltado a diminuir a carga semântica negativa. No entanto, a expressão delação premiada já se consagrou no meio jurídico, ultrapassou suas fronteiras e tornou-se corrente também nos meios de comunicação.
A delação premiada está disciplinada nos artigos 4º a 7º da Lei 12.850 de 2013, no capítulo reservado à Investigação e aos Meios de Obtenção da Prova. Não obstante a expressa menção à matéria típica de direito processual, os benefícios previstos ao réu delator têm nítido caráter material, tais como a redução das penas e a fixação do respectivo regime de comprimento.
A Constituição manifesta em seu artigo 5º, inciso LXIII, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”.
O significado normativo desse dispositivo é muito mais rico do que a simples possibilidade de permanecer em silêncio. Ele reflete, em verdade, o direito de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo.
A delação premiada pressupõe confissão. Ou seja, o coautor ou partícipe do crime confessa sua conduta e revela, entre outros dados, a identidade os demais agentes, com vistas ao perdão judicial, à redução da pena ou, ainda, ao suposto direito de não ser denunciado.
Antes da edição Lei 12.850/2013, os dispositivos legais acima referidos diziam que a delação deveria ser espontânea. Já o artigo 4º da lei vigente fala em colaboração voluntária. Ora, espontaneidade e voluntariedade significam condutas sem incitação ou constrangimento[6].
Em nosso ordenamento jurídico, toda e qualquer forma de violência ou ameaça, física ou moral, leva à invalidade da prova. Objetivamente, portanto, a obtenção da delação sob tortura seria tão ilegal quanto a ameaça de imposição de pena ou a utilização das prisões temporária e preventiva para esse fim.
Porém, a experiência forense mostra que quase todas as delações são feitas por pessoas que se encontram sob prisão cautelar, quando a espontaneidade ou voluntariedade do arguido se encontra intensamente comprometida[7].
Texto confeccionado por: José Carlos Cal Garcia Filho. Advogado em Curitiba, mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.