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Jurisdição crítica como instrumento para efetivação dos direitos fundamentais


Resumo: A importância de uma atividade jurisdicional crítica, atenta às diretrizes constitucionais, axiológicas e de justiça, bem como aos princípios norteadores de nosso ordenamento jurídico, como veículo para tornar efetivos e pulsantes os direitos fundamentais. Os limites relacionados ao exercício crítico da jurisdição, as suas possibilidades e relevância, visando um processo e uma ordem legal que cumpram de modo pleno e eficaz o seu mister. As formas de interpretação das normas jurídicas e a metodologia, os direitos fundamentais e a sua efetivação completa, através da prestação jurisdicional desvinculada de formalismos e tecnicismos exagerados.

1. Introdução

É fundamental para a existência de um verdadeiro Estado Democrático e Social de Direito um Poder Judiciário absolutamente independente. No entanto, necessário ir além, porque também imprescindível que, hodiernamente, a função jurisdicional seja exercida de modo crítico e atento à materialização dos princípios políticos e jurídicos estabelecidos constitucionalmente, em especial os que se relacionam direta ou indiretamente com os direitos fundamentais e a dignidade humana. Não é suficiente a previsão, ainda que completa, acerca dos direitos fundamentais. Faz-se também premente a sua efetivação, ou seja, que eles existam e se agreguem à vida das pessoas no sentido material (substancial). Uma das formas para tal realização é uma prestação jurisdicional temporânea, completa, atenta às diretrizes e exigências necessárias a tornar efetivos os direitos fundamentais, o que é não só possível e desejável, mas necessário. O trabalho, por conseguinte, tem como objetivo abordar questões que digam respeito à possibilidade e aos limites do exercício crítico da jurisdição, especialmente naquilo que se refira à efetivação de direitos fundamentais, ou seja, a passagem dos direitos conquistados no plano jurídico-político para a plena concretização. Para tanto, também imperiosa a análise das formas de interpretação das normas jurídicas e da metodologia da hermenêutica. É incontroverso que a mera afirmação de um rol de direitos pode nada significar, se não houver a implementação de condições para a realização e substancialização dos direitos proclamados.

2. Jurisdição

Conforme anotado por De Plácido e Silva, jurisdição tem como um dos seus significados:

“JURISDIÇÃO. Derivado do latim jurisdictio (ação de administrar a justiça, judicatura), formado, como se vê, das expressões jus dicere, juris dictio, é usado precisamente para designar as atribuições especiais conferidas aos magistrados, encarregados de administrar a justiça. Assim, em sentido eminentemente jurídico ou propriamente forense, exprime a extensão e limite do poder de julgar de um juiz” (SILVA, 2003, p. 802).

Analisando o referido sentido, é possível inferir que a jurisdição está relacionada à atribuição dos magistrados e tribunais para dizer o direito, ou quem tem o direito no caso concreto, prestando a tutela jurisdicional. Do Dicionário Houaiss é possível extrair a acepção antes indicada:

“2 poder legal, no qual são investidos certas pessoas e órgãos, de aplicar o direito nos casos concretos” (HOUAISS, 2001, p. 1694).

A soberania é una, indivisível. Não se pode conceber a existência de mais de um poder soberano estatal em um mesmo espaço territorial. Além disso, não se pode reparti-lo ou fragmentá-lo; o que ocorre é a divisão de competências e das funções políticas em três (legislativa, executiva e judiciária). A função jurisdicional faz atuar a vontade das normas sempre que tal não ocorrer pela vontade dos próprios destinatários delas. Seguindo os ensinamentos de José Roberto dos Santos Bedaque, retirado de obra organizada por Antonio Carlos Marcato:

“Jurisdição é, pois, uma das atividades fundamentais desenvolvidas pelo Estado. Ao impor coercitivamente as regras criadas pelo legislador, fazendo com que elas sejam observadas, o juiz põe fim a lides ou litígios, ou seja, a conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas” (MARCATO, 2004, p. 36)

Através da jurisdição são solucionadas as controvérsias surgidas naturalmente em virtude da coexistência/convivência social; por meio de tal atividade é que são trazidas soluções aos litígios, sendo certo que a prestação jurisdicional deve ser plena, eficaz, temporânea e a mais adequada possível.

3. Crítica

Importante estabelecer claramente qual a acepção de crítica que se pretende incorporar ao trabalho. Do Dicionário Houaiss extraímos as significações que mais interessam, quais sejam:

“...2 exame racional, indiferente a preconceitos, convenções ou dogmas, tendo em vista algum juízo de valor 3 p. ext. atividade de examinar e avaliar minuciosamente tanto uma produção artística ou científica, quanto um costume, um comportamento; análise, apreciação, exame, julgamento, juízo...10 FIL exame de um princípio ou idéia, fato ou percepção, com a finalidade de produzir uma apreciação lógica, epistemológica, estética ou moral sobre o objeto da investigação 11 FIL entre os pensadores iluministas e seus epígonos, questionamento racional de todas as convicções, crenças e dogmas, mesmo se legitimadas pela tradição ou impostas por autoridades políticas ou religiosas 12 p. ext. FIL no kantismo, questionamento empreendido pela razão a respeito de seus próprios limites, princípios, pretensões cognitivas e especulativas” (HOUAISS, 2001, p. 875)

Não se quer, pois, falar de crítica como um juízo de valor negativo acerca de algo. Do rol acima é possível afirmar que a crítica que pretendemos ver relacionada à atividade jurisdicional tem o sentido de fazer predominar, tanto quanto possível, um exame racional aprofundado e desapegado de dogmas, de falsas e nocivas imposições. Enfim, uma atividade mais aberta e principiológica dos juízes e tribunais, caracterizada e agregada pela busca efetiva e pelo respeito indeclinável aos parâmetros de justiça, aos princípios jurídico-constitucionais e às diretrizes axiológicas que alfim protejam os bens soberanos mais importantes. Indeclinável a necessidade do referido exercício crítico, a partir do momento em que se almeja um efetivo Estado Democrático e Social de Direito, no qual haja respeito à cidadania, à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ao pluralismo político. A crítica pretendida se refere, também, à descoberta de uma relação entre o objeto criticado (Direito e suas normas) e outras realidades, uma relação que sem o rigor crítico acabaria oculta da consciência jurídica.

4. Questões relacionadas ao exercício crítico da jurisdição

Os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), estabelecem: “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Nosso ordenamento jurídico, de base romano-germânica, e portanto tendo como fonte primacial do Direito o processo legislativo, não mais se satisfaz com o apego exagerado a um positivismo nocivo e a dogmas impositivos, que deixam os protagonistas da área jungidos ao jugo de formalismos e tecnicalidades exacerbadas, em prejuízo da efetividade, da decência política e da justiça que devem imperar. Levando em conta a instrumentalidade e a efetividade que se pretende tenham não só o processo mas também o Direito, essencial que o magistrado não se prenda a dogmas e a formalismos extremados e, sempre que possível, busque dar ao jurisdicionado a tutela objetivada. Há de se ter em vista a função do Estado, do Direito e do processo, como impulsionadores de realização efetiva da cidadania e de criação de um ambiente social saudável, em que haja respeito aos direitos e garantias individuais e coletivos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, e nas declarações de âmbito transnacional, relativamente àqueles pontos que passaram a integrar nosso ordenamento jurídico. O Direito deve atender às inclinações genéticas de uma sociedade, exprimindo os seus anseios, suas ambições, seus sentimentos e seu estado de consciência, bem como sua índole; deve estar, pois, em conformidade com o sistema ético de referência da coletividade. Precisa estar intimamente ligado à justiça, porque as normas jurídicas estão fundadas numa pluralidade de valores e são a tentativa de realização destes bens soberanos, quais sejam a dignidade, a liberdade, a igualdade, a segurança, a vida, a saúde, a utilidade e a ordem. Justiça, portanto, é a condição essencial e necessária para que referidos valores possam ser colocados em prática. O Direito tem que dar a cada um o que é seu, pautando-se em novos paradigmas jurídicos a fim de que se construa um ordenamento jurídico e um processo participativos, abertos e democráticos, com respeito abrangente e irrestrito aos direitos fundamentais. Nada obstante seja tarefa de difícil consecução, é preciso que o Direito dê a cada um aquilo que lhe pertence, seja justo. Não se pode mais aceitar um Poder Judiciário cartorialista, ineficiente, moroso e desacreditado, que não atende às exigências sociais e aos reclamos de uma maior instrumentalização e efetivação dos direitos. O Poder Judiciário, no entanto, não atua por conta própria, tendo em vista a necessidade de provocação. As demandas, as reivindicações e os importantes interesses das pessoas e dos grupos têm que ser levados até ele, daí porque se considera fundamental a existência de uma estrutura organizada para a litigância em prol da afirmação, luta, proteção e implementação de direitos fundamentais. Conforme anotado por Sergio Fernando Moro:

“A existência de organizações destinadas à litigância de cunho público ou social, com amplo suporte, quer público, quer privado, seria elemento essencial para promover tal revolução. Revoluções de direitos demandariam, portanto, contínuo e organizado esforço da sociedade civil, de forma a modificar a agenda judicial, pressionando-a, com estratégias de longo prazo, a reconhecer direitos fundamentais” (MORO, 2004, p. 104)

No que concerne à atividade jurisdicional, e na medida do que lhe é possível sem fugir do respeito ao ordenamento jurídico e de seus princípios essenciais, sem sombra de dúvida, é certo que quando se dá guarida aos direitos das pessoas mais vulneráveis também se está a proteger os direitos de todos, de uma forma geral e saudável. É premente a necessidade de preocupação com as conseqüências que a aplicação do Direito gera no convívio em sociedade. Apesar da segurança e certeza peculiares à dogmática jurídica, é também indispensável uma adaptação entre as expectativas normativas e a realidade social. A visão do Direito como uma ciência hermética, dotada de todas as soluções antecedentemente, transforma o magistrado dogmático em um pobre tecnocrata. As carências em geral são enormes, e não é aceitável que se negligencie todas as transformações sociais e dos direitos fundamentais, apegando-se a um ordenamento formal e uniforme. A proposta é de tornar o Direito mais adequado à realidade social e aceitável, com um proceder mais aberto, apoiado em valorações nobres e na busca do bem comum (harmonização do bem individual e do bem coletivo). A crítica (negativa) que se faz ao pensamento jurídico dogmático é a de que se confia em determinadas verdades e se as aceita sem questionamento, bloqueando-se a tentativa de um juízo de valor mais justo e racional-positivo. Exemplo de jurisdição crítica saudável pode ser a decisão judicial que torne vivos os direitos à educação, à saúde ou à assistência, ainda que contra a ordem judicial se tentem impor obstáculos rígidos de legalidade ou impossibilidade prática pelo Estado.

Por óbvio, não se quer chegar ao ponto em que impere o governo das pessoas, e não das leis, e por tal razão a visão alternativa e crítica do Direito tem limites, sendo o maior e mais importante deles a Constituição Federal, com relação à qual os juízes e tribunais devem manter lealdade. Não se almeja romper o consenso básico que deve existir entre o legislador e o julgador, mas somente admitir a possibilidade de uma jurisdição inovadora. A jurisdição crítica se legitima ética e legalmente quando atua para corrigir distorções entre uma norma e os valores fundamentais do sistema jurídico, ou quando percebe a falta de concretitude do sistema por falta ou desvirtuamento nocivo daqueles que têm a obrigação de administrar e legislar, ou ainda quando se deixa de aplicar uma regra para aplicação de um princípio, equilibrando as relações sociais, impulsionando a criação de uma sociedade pluralista, inclusiva e democrática, em que os indivíduos possam exercer a cidadania plena, ter direito a ter direitos e participar ativamente das decisões políticas.

5. Interpretação das normas jurídicas e metodologia da interpretação

Quando se trata de jurisdição, há que se abordar também, e necessariamente, as formas de interpretação das normas. A primeira delas é a gramatical, que é o ponto inicial da hermenêutica, ao mesmo tempo que funciona como limite dessa interpretação. Conforme ensina João Pedro Gebran Neto:

“Destarte, o método gramatical figura como primeiro combatente da batalha interpretativa, indicando tanto o primeiro sentido da interpretação, quanto o limite de arbítrio do intérprete. O sentido literal lingüisticamente possível deve ser necessariamente conjugado com outros métodos de interpretação” (GEBRAN NETO, 2002, p. 56).

Sabe-se que as normas são conseqüência dos fluxos e refluxos histórico-sociais, das especificidades e características políticas de determinado momento, e outro dos modos de interpretação é o histórico. Tal forma de interpretação não pode ser levada a extremos, exatamente pelo fato dos indivíduos, grupos sociais e entes em geral se transformarem, de maneira ininterrupta, e da possibilidade dos motivos que determinaram a elaboração de uma regra ou o estabelecimento de um princípio, não mais estarem presentes, o que pode culminar em inadequações interpretativas. Uma terceira forma de interpretação é a sistemática. O ordenamento jurídico deve ser visto com harmonia, e seu funcionamento respeitar o fato de se tratar de um conglomerado coordenado de regras e princípios interdependentes. Novamente seguindo os passos de João Pedro Gebran Neto, na análise de tal forma interpretativa, tem-se que:

“O intérprete deve analisar a norma juntamente com o todo em que está inserida, verificando se se trata de regra geral ou de exceção. Deve cuidar se determinada interpretação não colide com o restante do ordenamento jurídico de que dimana, ou se os dispositivos devem receber interpretação ampla ou restritiva. Além de verificar em qual lei está contida, deve também a norma ser observada segundo as demais leis do ordenamento jurídico, e, de modo muito especial, aquelas que lhe são hierarquicamente superiores. A Constituição, neste aspecto, é luz que ilumina o caminho da interpretação das demais normas jurídicas” (GEBRAN NETO, 2002, p. 59)

Finalmente, dos tradicionais métodos interpretativos, temos o teleológico, que se refere aos objetivos precípuos dos legisladores quando da elaboração das normas. Busca-se, por conseguinte, qual o sentido, o propósito e a intenção dos criadores das normas jurídicas, e qual o bem jurídico que se pretende tutelar. Quanto às metodologias da interpretação, o marco inicial foi a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que estabeleceu os moldes do positivismo jurídico. No entanto, a análise do normativismo de Kelsen, respeitada a sua enorme importância, leva-nos à conclusão de que o Direito e a Ciência Jurídica podem ser considerados um esqueleto que alberga qualquer conteúdo fático ou axiológico, o que não é desejável, pois não costumam trazer bons resultados a neutralidade absoluta e o descarte das perspectivas sociológicas e filosóficas que integram o fenômeno jurídico. O método clássico de interpretação leva a uma inércia dos juízes e tribunais, ou seja, à aceitação da neutralidade diante do objeto interpretado e à prevalência dos aspectos formais das normas jurídicas. Daquilo que tradicionalmente se tem, ainda o melhor caminho é uma interpretação tópico-sistemática, caracterizada pela dialeticidade. No que respeita aos novos métodos de interpretação, três deles merecem menção, quais sejam: 1 - Interpretação científico-espiritual de Rudolf Smend, segundo a qual dois pontos são fundamentais: em primeiro lugar, o texto constitucional e as demais normas vistos como um todo, levando em conta um perspectiva finalística e material; além disso, que haja uma harmonização do direito positivado com os dados da realidade. 2 - Interpretação estrutural-concretizante de Friedrich Muller, com uma visão politizada e crítica de interpretação, atentando-se para os aspectos da realidade, ou sociais, sem fugir dos limites estabelecidos pela ordem legal. 3 – Teoria estrutural de Robert Alexy, que de início faz a distinção entre texto (sinal lingüístico) e norma (resultado da compreensão do texto). Além disso, traça a diferenciação entre o conflito de regras e a colisão de princípios, bem como de direitos a algo, liberdade e competência. A comparação traçada por Carlos Maximiliano, apud João Pedro Gebran Neto, é indispensável, por resumir tudo aquilo que se deseja do magistrado:

“...existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo; porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil: dá vida ao papel, encarna de modo particular a personagem, imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptível; e de tudo faz ressaltarem aos olhos dos espectadores maravilhados belezas inesperadas, imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade. Não o consideram autômato; e, sim, árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e social” (GEBRAN NETO, 2002, p. 69)

6. Direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, normas jurídicas positivas constitucionais que são, devem ser vistos como a categoria instituída com o objetivo de proteção à dignidade, à liberdade e à igualdade humanas em todas as dimensões. O termo fundamental, é certo, deixa clara a imprescindibilidade desses direitos à condição humana. Classificar direitos como fundamentais significa tira-los da esfera de disponibilidade do legislador ordinário, agregando-lhes força, imperatividade absoluta, cogência e garantia tão intensas, que não é mais possível qualquer restrição, limitação, flexibilização ou não incidência deles. A diferença entre direitos e garantias repousa na circunstância de que estas não resguardam bens da vida propriamente ditos, tais como a liberdade, a propriedade, a segurança, mas sim fornecem instrumentos jurídicos aos indivíduos para exatamente garantir referidos direitos. As garantias, por conseguinte, são os veículos, os meios, as formas que conferem eficácia aos direitos fundamentais; são direitos de ordem processual, permissões para ingressar em juízo para obter uma medida judicial com uma força específica ou com uma celeridade não encontráveis nas ações ordinárias. Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior tecem a seguinte consideração ao abordar o tema:

“Rui Barbosa foi um dos primeiros a abordar a questão. Disse que da leitura do texto constitucional poder-se-iam separar as disposições declaratórias, que estariam a imprimir existência legal aos direitos reconhecidos, das disposições assecuratórias, que atuariam na proteção desses direitos fundamentais, limitando o poder. ... Logo, para diferenciar direitos de garantias, a interpretação do texto constitucional deve ter em foco o conteúdo jurídico da norma, se declaratório ou assecuratório, e não a forma redacional empregada” (ARAUJO, 2003, pp. 86-87) A bem da verdade, feitas as distinções acima e sem o intuito de estabelecer o caos, é possível assinalar que os direitos são garantias, e que as garantias são direitos. Das características relacionadas aos direitos fundamentais, importa elencar: 1 - Historicidade: têm caráter histórico como qualquer direito, ou seja, se formos rebuscar suas origens, encontraremos uma cadeia evolutiva, no pico da qual eles se situam. 2 - Universalidade: são destinados a todos os seres humanos, constituindo uma preocupação geral. 3 - Limitabilidade: não são absolutos, porque podem ocorrer situações em que o exercício de um direito fundamental coloca o seu titular em choque com quem exerce um outro direito fundamental, havendo então uma colisão de direitos, resolvida não pelo aspecto da validade, mas sim pela preponderância de um ou outro direito, de acordo com as peculiaridades do caso concreto. 4 - Concorrência: os direitos fundamentais podem ser acumulados num mesmo titular, ou cruzar-se vários deles. 5 - Irrenunciabilidade: os indivíduos não podem deles dispor. É possível que deixem de exercer alguns dos seus direitos fundamentais, mas não renunciar a eles. Ainda seguindo os passos de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior, no que concerne à especial proteção que nossa Constituição Federal de 1988 outorgou aos direitos fundamentais, foram ressaltados os seguintes aspectos: “a) nível singular de proteção de suas normas, exteriorizada pela inserção de seus dispositivos na Constituição, o que implica um processo mais gravoso de reforma e, desse modo, um dever de compatibilidade vertical entre o conjunto legislativo ordinário e a sua textura normativa; b) direitos e garantias individuais, como espécie dos direitos fundamentais, erigidos em limites materiais à própria competência reformadora, conforme enunciado no art. 60, § 4º, IV, da Constituição; c) comando de aplicabilidade imediata de seus preceitos, nos termos do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal”. (ARAUJO, 2003, pp. 92-93)

De modo bastante sucinto, pode-se classificar os direitos fundamentais em três gerações já conhecidas pela doutrina, somada a mais uma que surge, ou seja: primeira geração (direitos individuais e políticos, de defesa do cidadão contra a indevida intromissão estatal, devendo o Estado atuar de tal modo que se abstenha de se imiscuir na vida particular dos cidadãos); segunda geração (direitos sociais, econômicos e culturais para a satisfação das necessidades mínimas relacionadas à dignidade dos indivíduos, exigindo uma atuação positiva do Estado); terceira geração (direito à paz, do consumidor, ao desenvolvimento econômico, à comunicação, ao meio ambiente saudável); finalmente, de quarta geração (direito de ser diferente, a biotecnologia, a bioengenharia e direito ao exercício da plena cidadania). De relevo anotar que se utilizou o termo “geração”, ao invés de “dimensão”, ao classificar os direitos fundamentais, sem a conotação que alguns constitucionalistas pretendem lhe dar, ou seja, fugindo da idéia de uma geração de direitos substituindo a outra, mas sim com a convicta conclusão de que as categorias de direitos se complementam e se harmonizam. Qualquer dicotomia que se possa imaginar, concernente aos direitos fundamentais e suas gerações, deve ser superada levando-se em conta que são eles indivisíveis e interdependentes.

7. A necessidade de efetivação e a aplicabilidade dos direitos fundamentais

Não mais nos é suficiente a proclamação, o anúncio, a afirmação ou enunciação de direitos fundamentais. Exige-se, hodiernamente, a efetivação, a implementação, fazê-los vivos e pulsantes para as pessoas e grupos, enfim, que sejam verdadeiramente agregados à vida dos cidadãos. Não é mais possível aceitar o distanciamento existente entre a proclamação e o desfrute concreto e real dos direitos fundamentais, e para isso há de se ter em vista novos caminhos, novas garantias e, enfim, mais cidadania e ferramentas democráticas. Cabe ao pesquisador, ao jurista e ao operador jurídico trazer o Direito para a realidade das pessoas, buscar a efetivação dos direitos fundamentais e não mais aceitar que sejam meras aspirações da alma humana, mas sim permissões concedidas por meio de normas jurídicas e mais, que possam ser desfrutados de forma plena e justa. Para tanto, urge reconhecer e proteger os direitos fundamentais das pessoas,  harmonizando-os com o Estado de Direito e dando impulso ao efetivo exercício da cidadania, isto é, participação política dos indivíduos nos negócios do Estado e nas outras áreas de interesse público e geral, fazendo valer as prerrogativas que defluem de um Estado Democrático. Induvidoso que sem democracia e sem respeito absoluto aos direitos e garantias individuais e coletivos, não se consegue criar um ambiente minimamente saudável e propício à solução pacífica dos conflitos. As garantias de acesso à Justiça devem ser plenas, e não podem existir óbices ao exercício regular dos direitos e garantias constitucionalmente previstos. É preciso haver uma prestação jurisdicional completa e tempestiva, até porque justiça tardia não é senão injustiça. Necessário que se diminua o abismo existente entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações no campo dos direitos fundamentais. Especialmente quando se trata de matéria constitucional, assim se posicionou Sergio Fernando Moro, ao abordar a aplicabilidade das normas:

“Decorridos mais de dez anos da promulgação da Constituição de 1988, acredita-se que já se passou tempo suficiente para a assimilação do seu conteúdo democrático, sendo necessário conferir força de norma jurídica a todas as suas disposições, sem exceção. Por essa razão é que não podem ser aceitas construções doutrinárias ou jurisprudenciais que neguem aplicabilidade a parte das normas constitucionais. Seus defensores mais hábeis argumentam que, apesar das distinções entre elas, inexistiria disposição constitucional destituída de eficácia. Qualquer uma delas teria, pelo menos, a eficácia mínima de coibir comportamentos contrários à Constituição por parte dos poderes públicos ou de exercer a função de integração ou de interpretação do ordenamento jurídico. Todavia, isso é pouco, e não satisfaz àqueles que pretendem que a Constituição deve ter função diretora na vida política e social do país. Para tanto, é necessário que os poderes públicos estejam comprometidos com o desenvolvimento e a efetivação de todas as normas constitucionais, não sendo suficiente a aludida ‘eficácia mínima’”. (MORO, 2004, p. 233).

De indeclinável importância, além de uma atuação incisiva do Poder Judiciário, a pressão da sociedade civil, da imprensa, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil, das organizações não-governamentais e associações em geral, a fim de que o Estado Democrático e Social de Direito e todas as suas premissas e características vigorem de forma plena e eficaz. É preciso que todas as instituições antes mencionadas saiam da inércia e da passividade para uma atuação pró-ativa em busca da efetivação e da plenitude dos direitos fundamentais. Imperioso abandonar aquela idéia de que a pobreza é algo natural, inerente ao fenômeno social e humano. A pobreza é algo criado pela vida civilizada, pelo nosso ordenamento jurídico, pela ordem legal. As leis que regulam a propriedade, a assistência social, a educação, o contrato, a responsabilidade civil, a tributação, a política monetária e a ordem social, e a forma de interpreta-las e aplica-las é que determinam a distribuição de riqueza na sociedade. Conforme anota John Rawls:

“A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos. As sociedades aristocráticas e de castas são injustas porque fazem dessas contingências a base de referência para o confinamento em classes sociais mais ou menos fechadas ou privilegiadas. A estrutura básica dessas sociedades incorpora a arbitrariedade encontrada na natureza. Mas não é necessário que os homens se resignem com essas contingências. O sistema social não é uma ordem imutável acima do controle humano, mas um padrão de ação humana” (RAWLS, 1997, p. 109)

Não deve haver óbices, obstáculos e impedimentos à fruição dos direitos fundamentais, que ou são fundamentais, e assim devem ser vistos, protegidos e efetivados, ou não são, e então possibilitado está que fique à disposição do legislador. Não é aceitável a existência de direitos fundamentais dependentes de nova regulamentação legislativa e, por conseguinte, destituídos de aplicabilidade plena. Assim deve pensar o Poder Judiciário quando da prestação da tutela jurisdicional, sem flexibilizações, restrições, impedimentos ou relativizações daquilo que foi considerado fundamental. Assim é que se faz incidir verdadeiramente não só a democracia em sentido formal, mas especialmente a democracia substancial ou material, qual seja um ambiente, uma ordem constitucional que se baseie no reconhecimento e na garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é expressa ao estabelecer que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Muitos constitucionalistas pregam que tal prescrição não soluciona todas as questões, porque alguns direitos, como por exemplo os sociais, dependem de normas definidoras e regulamentadoras e, por conseguinte, têm caráter programático. Discordamos de tal pensamento. O que se espera é uma exegese emancipatória, ainda mais quando envolvido está o princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo essencial da hermenêutica constitucional. Conforme ensina João Pedro Gebran Neto, assim deve ser analisada a questão: “O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: simples programas, exortações morais, declarações, sentenças políticas, aforismos políticos, promessas, apelos ao legislador, programas futuros, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao do restante dos preceitos da Constituição” (GEBRAN NETO, 2002, p. 151)

O intérprete e operador jurídico precisam extrair o máximo de efetividade dos comandos relacionados aos direitos fundamentais, devendo o princípio da dignidade da pessoa humana funcionar como diretriz e limite à atuação do Estado, além de último reduto de hermenêutica.

8. Considerações finais

O que se deseja é uma prestação jurisdicional crítica, que esteja atenta às exigências mais importantes da convivência em sociedade, na busca incessante por um efetivo Estado Democrático e Social de Direito, e com o objetivo de implantar verdadeiramente a democracia e a igualdade no seu sentido material ou substancial. O Direito jamais pode deixar de ser um instrumento para a realização da Justiça. Os direitos fundamentais não mais podem ser vistos como promessas ou diretrizes morais, pois contêm mandamentos com força jurídica e com vida pulsante, e a interpretação das normas jurídicas de modo crítico e dialético é um dos caminhos para que possamos celebrar um ordenamento jurídico mais efetivo, justo e que colabore para o engrandecimento do país e da sociedade. Finalizamos tomando como nossas as palavras de Eros Roberto Grau:

“Desafiá-los, isso me rejuvenesce, pois – repito o que disse há alguns anos – não merece o privilégio de viver o seu tempo quem não é capaz de ousar...Ousar pelo social, jamais pelo individual de e em si mesmo” (GRAU, 2002, p. 173)

9. Referências bibliográficas

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. tradução de Carlos Nelson Coutinho. 15. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CÁRCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito. tradução de Edílson Alkmim Cunha. 1. ed. São Paulo: LTr, 1998. CENEVIVA, Walter. Direito constitucional brasileiro. 3. ed. São Paulo; Saraiva, 2003. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1995. GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória. 1. ed. São Paulo: RT, 2002. GRAU, Eros Roberto.  O Estado, a liberdade e o direito administrativo. Revista crítica jurídica nº 21, Jul-Dez 2002. HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. MARCATO, Antonio Carlos, coordenador. Código de processo civil interpretado. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2004 MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. 1. ed. São Paulo: RT, 2004. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. SOUZA, Luciane Moessa de. Normas constitucionais não-regulamentadas: instrumentos processuais. 1. ed. São Paulo: RT, 2004. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. 3. ed. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001. YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. 1. ed. São Paulo: Atlas, 1999. Texto confeccionado por: Daniel Marques de Camargo. Advogado. Mestre em Ciência Jurídica UENP. Especialista em Direito Processual Civil. Professor titular de TGP e Direito Processual Civil. Professor de Pós-Graduação em Direito Processual Civil. Autor do livro Jurisdição crítica e direitos fundamentais e de publicações jurídicas e coautor de diversas obras jurídicas.

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