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Operação "lava jato": entre a legalidade e a vaidade
O escândalo da Petrobras, objeto da investigação que deflagrou a operação "lava jato"[1], sem sombra de dúvidas, passou a integrar as agendas temáticas da mídia brasileira. E, como tudo na vida, isso é bom e ruim.
Se por um lado, foi bom que a preocupação com o problema da corrupção e de crimes como lavagem de dinheiro e evasão de divisas tenha sido popularizada, a ponto de dividir espaço com o macarrão na mesa de domingo, por outro lado, a forma como isso vem acontecendo não tem sido, necessariamente, positiva. Afinal, a informação pode chegar às pessoas por dois meios, a saber, pelo jornalismo investigativo ou pelo jornalismo sensacionalista, e conforme for, pode haver ou não efeito próximo ao que acontece nas brincadeiras de telefone sem fio, qual seja, a deturpação da informação, com a diferença que, no caso da brincadeira infantil, a informação que sofre mutação não é relevante ao contexto social, tampouco é movida pela busca de lucros financeiros.
Enquanto o jornalismo investigativo se amolda aos contornos de um Estado Democrático de Direito; o sensacionalista atenta contra a sua base, ou seja, a inteligência do cidadão livre para buscar informação e, de posse dela, participar da coisa pública, de modo a evitar retrocessos e incentivar progressos.
Nesse contexto, e partindo-se da premissa de que a mídia “‘sedimentou a sua posição central e proeminente em relação à sociedade, na medida em que se legitimou como instância difusora de informação sobre o mundo, o país, os arredores e o local onde habitavam – e habitam – os seus consumidores ou usuários (leitores, ouvintes e telespectadores)’, conclui-se que ‘hoje a mídia, como instituição fundamental ao exercício pleno da democracia, goza de credibilidade e confiança aos olhos da população à qual deve servir’”[2].
Na civilização do espetáculo de que fala Mario Vargas Llosa, os meios de comunicação social são, inegavelmente, “elementos indispensáveis para o exercício de poder de todo o sistema penal”[3] e, nessa linha, a notícia criminal transformou-se em verdadeiro objeto de culto[4] da imprensa.
Ressalva feita ao jornalismo investigativo, vale dizer que, no Brasil, o jornalismo do sensacional “exerce função de instrumentalizador das informações e, a partir das técnicas da agenda temática e do enquadramento episódico, faz com que as informações sejam projetadas nas vozes dos cidadãos, de maneira que pareçam ser frutos de suas mentes”[5].
Esta, pois, a semente do que se chama clamor público e que mais deveria chamar clamor publicado, fenômeno necessário para fortificar teses egoístas — quiçá inconstitucionais — que só visam a centralização de poder, ainda que para isso seja preciso minimizar direitos e garantias. E, mais, esse clamor — prejudicial ao Estado de Direito — serve como instrumento de manobra para a criação de políticas públicas ou alterações legislativas, sob o argumento de se exercer a democracia por meio da vontade do povo — uma vontade deturpada, registre-se — ou, ainda, para se obter segurança[6].
Para além disso, é preciso que se tenha em mente a existência permanente de um conflito funcional entre a justiça e a imprensa. Ambas têm rotinas de funcionamento distintos, fato que provoca atritos quotidianos, considerando que a população é curiosa e sádica, em sua maioria.
O conflito é o seguinte: “o modelo vertical, formal e escrito dos sistemas de justiça, com sua estrutura concentrada e fechada, opõe-se ao da comunicação social, a qual se apresenta horizontal, desprovida de formas e oral (...)”[7].
Como se vê, apesar das semelhanças entre a justiça e a imprensa, no que se refere a ambas representarem “valores democráticos, refletidos especialmente na liberdade de manifestação e nas garantias de cidadania, elas estão substancialmente distanciadas quanto aos seus estatutos, objetivos e métodos”[8].
Nesse sentido, “não se pode olvidar que na era do on demand, serviços que não sejam instantâneos — ou que cheguem bem próximo disso — são tidos como obsoletos. E, nesse cenário, a diferença entre o desempenho da imprensa e o da justiça penal se alarga mais do que a dimensão do oceano (...). É que, a despeito de ambas as atividades manifestarem juízo de valor sobre um mesmo fato, enquanto a imprensa trabalha com as notícias em tempo real, a justiça penal está adstrita ao princípio do devido processo legal, de modo que cada fase processual é imprescindível, sob pena de violação a algum direito fundamental, em especial, o tão importante direito de defesa do investigado/réu”[9].
O processo deve ser respeitado, pois se trata do instrumento pelo qual o Estado administra a Justiça, na medida em que verifica se a imputação feita a um cidadão é ou não justificada, razão pela qual o processo revela-se em verdadeira garantia do jurisdicionado, que visa dar efetividade à presunção de inocência, ao contraditório, à ampla defesa, à produção de provas lícitas etc[10]. Em suma, diferentemente do que afirmado pelos juízes federais Antonio Cesar Bochenek e Sérgio Fernando Moro[11], fazemos coro ao argumento de Abhner Youssif Mota Arabi[12], no sentido de que o processo não pode ser visto como um problema, ainda que se preste a apurar esquema de corrupção e lavagem de dinheiro de dimensões gigantescas ou qualquer outra conduta considerada grave.
O processo deve ser respeitado com todas as suas garantias, assim como manda a Constituição e a Lei!
Os profissionais que atuam em processos jurídicos, queiram ou não, devem permanecer por de trás das câmeras, o que não significa dizer que devam ter suas identidades desconhecidas. Não há espaço para vaidades ou protagonismos! As partes devem expor suas razões a fim de dar substância aos seus pontos de vista, frente a um juiz imparcial. Vale dizer, que a exposição de razões e pensamentos sobre este ou aquele determinado caso deve ser feita no fórum, por escrito ou em audiência, máxime se o processo estiver sob segredo de justiça, ainda que o decreto preveja níveis diversos de acesso.
É verdade que as pessoas têm a liberdade para expressar sua opinião (e ainda bem que é assim). “Agora, o funcionário público, ainda mais quando atuante numa situação penal, deveria ter alguns resguardos”[13].
Nesse sentido, em que pese estar travestido de membro de associação de classe profissional, frases como “a ineficiência é ilustrada pela perpetuação na vida pública de agentes que se sucedem nos mais diversos escândalos criminais. Não deveria ser tão difícil condená-los ao ostracismo” não podem ser ditas, em entrevista, pelo juiz da causa mais famosa do país, sob pena de precisar se explicar em sede de exceção de suspeição por, em tese, antecipar seu julgamento antes do término da instrução criminal[14]. Isso é sério e grave, ainda mais quando o anúncio da proposta de alteração legislativa não é feito primeiramente ao seu destinatário constitucional, o Congresso Nacional, mas sim à mídia, o que demonstra a intenção de buscar apoio popular para dar força a uma medida teratológica e que é de todo inconstitucional![15]
Afinal, como já registrado, processo e suas fases constituem uma garantia do jurisdicionado e não mero instrumento de condenação. Independentemente da gravidade da acusação, é preciso que o magistrado parta do pressuposto de que o jurisdicionado é inocente, cabendo ao órgão acusador demonstrar sua eventual responsabilidade, jamais o contrário. O tempo e os vícios profissionais não podem se sobrepor aos mandamentos constitucionais, máxime se tal sobreposição significar prejuízos a serem suportados pelo jurisdicionado, parte mais frágil da relação processual.
Texto confeccionado por: Bruno Garcia Borragine, João Batista Augusto Junior e Rafael de Souza Lira. Bruno Garcia Borragine é advogado no Bialski Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Direito GV. João Batista Augusto Junior é advogado no Bialski Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IBCCRIM e pela Universidade de Coimbra. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Mackenzie. Rafael de Souza Lira e sócio do Silva Franco, Feltrin e Souza Lira Advogados Associados, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Secretário-Geral da Comissão Especial IBCCRIM-Coimbra. Autor da obra Mídia Sensacionalista. O segredo de justiça como regra; Co-autor da 7ª edição da obra Crimes Hediondos.