A boa-fé e o dever de informar como limite do superendividamento

A boa-fé se apresenta em uma diversidade de situações e significados, ora como princípio, ou ainda como standard jurídico e regra de comportamento, embora traduza, no nosso idioma, assim como no espanhol, no francês, no italiano e no inglês, uma única expressão linguística para designar duas realidades diferentes: a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva, unidas apenas pelo mesmo sintagma. Nisso tais sistemas diferem do idioma alemão, no qual tais realidades normativas se expressam na terminolgia Treu und Glauben (boa-fé objetiva) e Gutten Glauben (boa-fé subjetiva), evitando-se assim confusões.

O termo boa-fé, em sua acepção subjetiva, era utilizado pelos tribunais brasileiros exclusivamente como desconhecimento de determinado vício jurídico; a indicar o estado psicológico do sujeito, que, a despeito de atuar contrariamente à lei, merecia tratamento benéfico por conta da ausência de malícia caracterizada por sua crença ou suposição de estar agindo em conformidade com o ordenamento.

Na doutrina e na jurisprudência, até o final dos anos 80, o panorama era o mesmo, vislumbrando-se uma boa-fé subjetiva sob a forma de crença legítima ou de ignorância escusável, sendo Clóvis do Couto e Silva o grande precursor na distinção entre a concepção subjetiva da concepção objetiva da boa-fé. Aqui também cabe destacar os estudos realizados por António Menezes Cordeiro e Judith Martins-Costa sobre o tema.

A boa-fé obrigacional, também dita boa-fé objetiva, chegou tarde ao ordenamento jurídico pátrio, visto que somente a partir de 1990 é que os textos passaram a contemplá-la no domínio próprio das relações de consumo. Com o advento do CC/02 observamos expressivas referências ao princípio da boa-fé.

É possível vislumbrar menção à boa-fé em uma gama de dispositivos legais, como no Código Civil (Lei 10.406/02), nos artigos 113, 187 ou no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), nos artigos 4º, inciso III, artigo 51, inciso IV e o recente artigo 54-A, parágrafo 1º.

Mas uma definição estática e fechada continua sendo tarefa árdua, palavras de Judith Martins-Costa, em se tratando de "uma expressão semanticamente vaga ou aberta e, por isso, carecedora de concretização, sendo a tarefa de concretizar sempre, e necessariamente, contextual".

Mas deve haver um conteúdo mínimo, podendo-se aqui trazer o honeste vivere ciceroniano, qual seja, "então nada mais significa viver bem e feliz, a não ser viver de forma correta e honesta".

Citando mais uma vez a obra de Judith Martins-Costa:

"O agir segundo a boa-fé objetiva concretiza as exigências de probidade, correção e comportamento leal hábeis a viabilizar um adequado tráfico negocial, consideradas a finalidade e a utilidade do negócio em vista do qual se vinculam, vincularam e cogitam vincular-se, bem como o espefício campo de atuação em que situada a relação obrigacional".

A professora Claudia Lima Marques, em palestra proferida no 6º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, sacramenta: "Boa-fé é um pensar refletivo, é o pensar no outro, no mais fraco, no parceiro contratual, nas suas expectativas legítimas, é lealdade, é transparência, é informação, é cooperação, é cuidado, é visualização e respeito pelo outro".

Como já mencionado acima, a boa-fé objetiva floresce no Código de Defesa do Consumidor, como princípio fundante da Política Nacional das Relações de Consumo (artigo 4º, III), como critério de aferição da validade das cláusulas contratuais (artigo 51, IV) e como elemento subjetivo do consumidor superendividado (artigo 54-A, parágrafo 1º).

Como desdobramento da boa-fé objetiva o CDC encampou no artigo 4º caput o princípio básico da transparência.

"Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo".

O princípio da transparência é concretizado através dos deveres informativos decorrentes da boa-fé, é o direcionamento de condutas, é a pedra angular no exercício da autonomia contratual, apresentando com a devida clareza os pormenores que cercam aquela relação contratual.

Assim, é possível compreender o quão profundo e imprescindível é o dever de informar, uma conduta ativa imposta ao fornecedor; o consumidor é o detentor do direito subjetivo de informação (artigo 6º III CDC). Característico de tal direito é o fato de a pessoa já ter alguma noção prévia sobre a existência de uma informação requerida, mas não conhece os detalhes ou sua abrangência. Pode a informação consistir em dever principal como em dever acessório, instrumental ou anexo na relação de consumo.

Ainda no que tange ao dever de informar, cabe destacar o artigo 46 do CDC, que traz a obrigatoriedade de informação sobre o conteúdo do contrato , com destaque para os contratos de massa, em que a manifestação de vontade do consumidor, na maioria das vezes, se dá sem que este tenha conhecimento exato das obrigações contratuais que está assumindo. Boa-fé significa também cooperação, facilitando a vida da parte contrária, de maneira leal, sem que haja prejuízo ao próprio interesse .

A informação é um direito fundamental, prevista no artigo 5º, incisos XIV, XXXIII e LXXII da Constituição Cidadã de 1988, sendo certo que, de um lado da moeda temos o direito fundamental à informação, do outro o dever de informar. Nesse sentido, afirma Paulo Lôbo:

"O direito à informação, no âmbito exclusivo do direito do consumidor, é direito à prestação positiva oponível a todo aquele que fornece produtos e serviços no mercado de consumo. Assim, não se dirige negativamente ao poder político, mas positivamente ao agente de atividade econômica. Esse segundo sentido, próprio do direito do consumidor, cobra explicação de seu enquadramento como espécie do gênero direitos fundamentais" .

E a informação decisiva para a celebração e a execução adequadas do contrato? Vislumbra-se pelas partes contraentes uma incidência do princípio da boa-fé, no que tange à informação adequada?

Cabe destacar a Resolução nº 39/248, de 16 de abril de 1985, da ONU; uma resolução fruto de discussão estabelecida na ONU, que fixou as linhas gerais da proteção internacional do consumidor. O capítulo II da mencionada resolução firma os princípios gerais da proteção do consumidor no plano internacional, os quais têm, dentre outros, a função de fornecer aos consumidores informações adequadas para capacitá-los a fazer escolhas acertadas de acordo com as necessidades e desejos individuais .

Sobre este tema, imperioso se faz destacar o julgado extremamente didático do ministro Herman Benjamin sobre o tema, o REsp 586.316 — MG, 17/4/2007 :

"O direito a? informac?a?o, abrigado expressamente pelo artigo 5°, XIV, da Constituic?a?o Federal, e? uma das formas de expressa?o concreta do Princi?pio da Transpare?ncia, sendo tambe?m corola?rio do Princi?pio da Boa-fe? Objetiva e do Princi?pio da Confianc?a, todos abrac?ados pelo CDC.

[...]

Entre os direitos ba?sicos do consumidor, previstos no CDC, inclui-se exatamente a 'informac?a?o adequada e clara sobre os diferentes produtos e servic?os, com especificac?a?o correta de quantidade, caracteri?sticas, composic?a?o, qualidade e prec?o, bem como sobre os riscos que apresentem' (art. 6°, III).

8. Informac?a?o adequada, nos termos do artigo 6°, III, do CDC, e? aquela que se apresenta simultaneamente completa, gratuita e u?til, vedada, neste u?ltimo caso, a diluic?a?o da comunicac?a?o efetivamente relevante pelo uso de informac?o?es soltas, redundantes ou destitui?das de qualquer serventia para o consumidor.

[...]

A informac?a?o deve ser correta (= verdadeira), clara (= de fa?cil entendimento), precisa (= na?o prolixa ou escassa), ostensiva (= de fa?cil constatac?a?o ou percepc?a?o) e, por o?bvio, em li?ngua portuguesa.

11. A obrigac?a?o de informac?a?o e? desdobrada pelo artigo 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informac?a?o-conteu?do (= caracteri?sticas intri?nsecas do produto e servic?o), b) informac?a?o-utilizac?a?o (= como se usa o produto ou servic?o), c) informac?a?o-prec?o (= custo, formas e condic?o?es de pagamento), e d) informac?a?o-adverte?ncia (= riscos do produto ou servic?o)".


Compreender a boa-fé e o dever de informar é imperioso para seu desdobramento como limite ao superendividamento do consumidor, visto que a informação de qualidade, esclarecedora, confiável e qualificada, deve ser apresentada de forma prévia e adequada no momento da oferta ao consumidor no fornecimento de crédito, na forma do artigo 54-B c/c artigo 52 da Lei 8.078/90. Os deveres de informação adstringem as partes, segundo António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, "à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato" .

É preciso destacar a relevância desta discussão no cenário atual brasileiro; a pandemia de Covid-19, que trouxe um impacto social e econômico sem precedentes, perda de emprego, falecimento do provedor da entidade familiar e desaguou em famílias endividadas buscando nos contratos de empréstimos consignados a tábua de salvação para minimizar as urgências financeiras.

A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) de outubro de 2021 da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), constatou que o endividamento das fami?lias aumentou 0,6 ponto percentual entre setembro e outubro, alcanc?ando 74,6% dos lares no pai?s.

Assim, são princípios, valores, regras que se completam na condução da ratio legis do Código de Defesa do Consumidor, permitindo uma valorização do momento de formação do contrato de consumo permitindo-se a elaboração de uma vontade racional, livre/autônoma, legítima e devidamente informada  por parte do contratante vulnerável.

Nas palavras do ministro Herman Benjamin: "O consumidor bem-informado é um ser apto a ocupar seu espaço na sociedade de consumo".

Fonte: Conjur

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