Um dos temas mais tormentosos do Direito Tributário diz respeito à devolução dos tributos cobrados a maior pelo Fisco, em especial os assim denominados tributos indiretos, considerados aqueles que, por sua natureza, repercutem nas relações econômicas, trasladando o ônus para os consumidores finais. Esse tema é tratado especificamente pela Súmula 546 do STF e pelo art. 166 do CTN, que partem de ideias inadequadas, conforme se demonstrará nestas breves linhas.
Assevera-se que esta relação é tipicamente de direito público, devendo ser afastado o direito civil de sua análise, pois este regula relações entre partes privadas, e, no caso, uma das partes envolvidas é o Estado. Poder-se-ia discutir se esta devolução é matéria de Direito Tributário, que estuda a arrecadação dos tributos pelo Estado, ou de Direito Financeiro, que estuda o gasto público — afinal, como se trata de devolução do que é indevido, o dinheiro sairá dos cofres públicos, ao invés de entrar, o que gera uma regra-matriz financeira1, reversa à tributária —, porém esse não é o foco do debate, sendo suficiente constatar que o direito público rege esta relação.
Esse afastamento do direito privado deve ocorrer não apenas no plano normativo, mas também no plano lógico, pois, a despeito de se saber que é uma relação de direito público, é usual a análise do assunto sob a luz de institutos típicos de direito privado, como o do pagamento indevido2 ou o do enriquecimento injustificado3. Logo, deve-se afastar tanto as normas quanto os institutos de direito privado para a perfeita compreensão da devolução dos tributos cobrados indevidamente.
O assunto foi objeto de duas Súmulas do STF: a 71, de 1963, que vedava qualquer espécie de devolução4, posteriormente revogada pela 546, que mitigou a rigidez da anterior, admitindo a devolução “quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo” 5, de 1969. A despeito de o CTN ser de 1966, predominou a visão privatística do Código Civil de 1916, defendida pela doutrina do Tesouro Nacional.
Foi introduzido pelo art. 166, CTN6, um sujeito na relação de devolução dos tributos pagos a maior, que é o contribuinte de fato, isto é, o terceiro, que deve expressamente autorizar o contribuinte de direito a pedir a devolução, no caso dos tributos que comportem, “por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”. Este terceiro, que na prática é o consumidor, não é regulado pelo CTN (art. 121, parágrafo único, I e II), que prevê apenas a figura do contribuinte e do responsável, que não se confundem com aquele. Brandão Machado, em erudito estudo sobre o assunto7, e que serve de amparo para as reflexões aqui desenvolvidas, aponta que esta inserção no CTN decorreu da adoção da teoria da doutrina do Tesouro Nacional, que se impôs aos juristas, “impressionados com o mecanismo da translação dos impostos e com a teoria do enriquecimento injustificado”, além da pouca atenção à matéria no âmbito do Direito Financeiro e Tributário.
O art. 166 e a Súmula 546 partem de uma concepção juridicamente inadequada, pois, (1) além de subordinarem a devolução dos tributos cobrados indevidamente à lógica do direito civil, próprio das relações privadas, (2) introduziram um critério econômico em sua análise, pois partiram da incorreta distinção teórica entre tributos diretos e indiretos, ou, na dicção da norma, tributos que transferem ou não seu encargo financeiro.
Centremos agora nossa atenção nesse segundo argumento, considerando apenas as pessoas jurídicas. Todos os tributos repercutem economicamente na formação dos preços das pessoas jurídicas, desde o IPTU até o Imposto de Renda, Pis, Cofins, ICMS etc. Toda essa carga tributária está nos preços praticados, pois os consumidores não pagam tributos, pagam preços. Nenhum consumidor compara a carga tributária incidente sobre determinada mercadoria ou serviço que vai adquirir – compara preços, qualidade, prazos de entrega etc. Grosso modo, ao final de um período, havendo lucro, o custo com esses tributos terá sido integralmente trasladado; não havendo lucro, presumivelmente só parte desse custo tributário terá sido repassado ao consumidor. Essa é a lógica macroeconômica, que deve ser aplicada à análise do caso de forma macrojurídica, de modo a compreender todo o sistema, toda a cadeia econômica. Porém o art. 166, CTN e a Súmula 546 adotam uma visão estanque, isolada e fracionada do fenômeno.
Exemplos podem facilitar a compreensão: qual a possibilidade concreta de uma lanchonete reaver o ICMS que possa ter sido cobrado a maior no preço dos milhares de sanduiches vendidos todos os meses? O ICMS foi transferido no preço das mercadorias e seguramente a empresa não conseguirá autorização de seus clientes para reaver esse tributo, caso considerado indevido, seja por erro de lançamento, seja por eventual inconstitucionalidade normativa. Modificando o exemplo pode ficar mais fácil: basta trocar a lanchonete por uma fábrica de aeronaves – a autorização dos clientes para a recuperação do ICMS cobrado a maior se torna mais factível, embora de difícil operacionalização; porém, também neste caso, o ICMS terá sido trasladado.
O que está por detrás dessa lógica são os institutos civilistas do pagamento indevido e do enriquecimento injustificado, inadequadamente aplicados às relações financeiro-tributárias. Sob esse pálio, entende-se que, se o contribuinte recebeu do consumidor o tributo que pagou a maior, o Estado não deverá devolver esse valor, exceto se expressamente autorizado. Direito civil na veia!
A proposta de Brandão Machado, à qual adiro integralmente, é que esta relação deve ser analisada através das normas de direito público, e sob a lógica dos institutos de direito público, abandonando-se integralmente o direito privado para sua compreensão. Acatado esse pressuposto lógico e normativo, haverá um completo giro epistemológico, destacando-se um dos direitos fundamentais da relação fisco-contribuinte, que é o princípio da reserva legal tributária (art. 150, I, CF), pelo qual o Estado só pode arrecadar os valores que tiverem sido estabelecidos em lei, isto é, a lei é o limite da exação tributária, tanto para o setor privado, quanto para o Estado. Sendo assim, a lei tanto impede que seja cobrado do setor privado qualquer valor além do que for estabelecido, como também impede que o Estado receba qualquer valor além do determinado.
Logo, se a lei permite que o Estado arrecade R$ 100,00 de tributo (não importa o tributo), qualquer valor recebido acima desse montante legalmente autorizado, deverá ser devolvido, pois ilegal. Simples assim.
Observe-se que colocar o princípio da reserva legal tributária no centro da análise alcança todas as hipóteses de pagamento indevido, seja por erro do contribuinte, seja em razão de inconstitucionalidade declarada pelo STF. Em qualquer dos casos, o Estado só está autorizado a receber o montante legalmente permitido – qualquer centavo a mais deve ser devolvido, pois extrapola os limites legalmente permitidos. Simples assim, de novo.
Embora o art. 166, CTN e a Súmula 546, STF, se refiram à restituição dos tributos, a jurisprudência do STF, bem como a dos demais tribunais, também aplicam esse entendimento privatístico à compensação tributária, que pode ocorrer através do sistema Per/Dcomp, ou assemelhados.
Já passa da hora de advogados e juízes se darem conta desse erro de interpretação e limitarem o poder do Estado em tributar através dos assim chamados tributos indiretos, que, a despeito de eventualmente serem declarados inconstitucionais, nem sempre retornam a quem indevidamente os pagou.
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