Acessibilidade digital e LGPD: o exercício da cidadania pela pessoa com deficiência
A humanidade vivenciou grandes revoluções em razão da evolução tecnológica como ao surgir a máquina a vapor, a eletricidade e os primeiros computadores. Porém, nem todas as pessoas conseguiram participar e aproveitar, em igualdade de condições, dos benefícios trazidos pelas tecnologias. Como veremos, a falta de acessibilidade implica em barreiras para a autonomia e o exercício da cidadania das pessoas com deficiência.
Segundo Klaus Schwab, diretor e fundador do Fórum Econômico Mundial (
World Economic Fórum, Davos, 2016), vivemos na 4ª Revolução Industrial e nela observamos, claramente, rápidas transformações na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos com pessoas, organizações e o Estado, ou seja, como exercemos a cidadania. A internet, presente o tempo todo e em toda parte, elimina, cada vez mais, os limites entre os mundos físico, digital e biológico, na chamada Sociedade 4.0. A intersecção entre esses mundos só é possível em razão da alta velocidade dos fluxos de dados que trafegam na
web e geram informação, que por sua vez apoia a tomada de decisão, seja por parte de grandes organizações ou por você, ao decidir com que roupa sairá de casa pela manhã após dar uma olhada na previsão do tempo. Bem-vindo (a) à Economia dos Dados!
Acessibilidade, por sua vez, diz respeito ao acesso fácil, refere-se a algo compreensível e razoável, ou seja, a ausência de barreiras para acessar algo. No universo das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, implica a possibilidade e condição de alcance para utilização, de forma segura e autônoma, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações. Prevista na Lei Brasileira de Inclusão — LBI (Lei nº 13.146 de 2015), a acessibilidade
"é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social" (artigo 53). Neste artigo focaremos na acessibilidade à informação e à comunicação no mundo digital.
De volta à Economia de Dados, em que por meio de tecnologias da informação e comunicação as pessoas acessam e produzem dados digitais para as mais diversas finalidades como, por exemplo, ao colher informações e preencher um formulário para a renovação da CNH (Carteira Nacional de Habilitação) pelo
website do DETRAN; ao entrar numa rede social em busca de pessoas que tenham os mesmos interesses e, ao mesmo tempo, receber propaganda de produtos e serviços que interessam; ou, ao pesquisar os trabalhos e as intenções de candidatos a uma vaga no legislativo para decidir, de forma consciente, em quem votar na próxima eleição. Nossas necessidades são, cada vez mais, demandadas e supridas no ambiente digital e para isso é necessário que haja a possibilidade de acesso à informação e à produção de dados.
Diante deste cenário, resta evidente que a falta de acessibilidade digital, em razão de barreiras socioeconômicas, geracionais ou relacionadas às condições de pessoas com deficiência é um entrave à participação efetiva na Sociedade da Informação em igualdade de condições com as demais pessoas e impedimento, portanto, do exercício pleno da cidadania na Sociedade da Informação. Ao considerarmos que cerca de 1,3 bilhões de pessoas no mundo possuem algum tipo de deficiência e encontram inúmeras barreiras para interagir no universo
online, de acordo com o Guia de acessibilidade digital para marcas diversas e inclusivas, estamos diante de um contexto que envolve valores éticos e políticas públicas expressas na forma de leis e demais normas, como veremos adiante.
No âmbito das normas internacionais, a acessibilidade digital está prevista na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo (ONU, 2007). A convenção foi incorporada à nossa Carta Magna, no rol dos direitos e garantias individuais por se tratar de tema de Direitos Humanos (artigo 5º, parágrafo 3º), e preconiza a promoção do acesso da pessoa com deficiência
"a novos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet" (artigo 9, 2, "g").
Posteriormente, a LBI foi promulgada e tornou obrigatória
"a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente" (artigo 63).
Já no âmbito das normas que disciplinam o uso da internet no Brasil, contamos com o Marco Civil da Internet — MCI (Lei nº 12.965 de 2014) que tem como fundamentos, entre outros, os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais, assim como, a pluralidade, a diversidade e a finalidade social da rede (artigo 2º, incisos II, III e VI). Nesse sentido, a lei dispõe que
"o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania" e aos usuários é assegurado a
"acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário" (artigo 7º,
caput e inciso XII).
Ao disciplinar o uso da internet no Brasil, o MCI tem como princípio a proteção da privacidade e dos dados pessoais dos usuários (artigo 3, incisos II e III) e como objetivo a promoção do direito de acesso à internet a todos, assim como
"do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução de dos assuntos públicos" (artigo 4, incisos I e II).
Em razão do crescente uso indiscriminado de dados pessoais pelas organizações, foi promulgada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais LGPD (Lei nº 13.709 de 2018) que
"dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural". A lei regula a coleta, o tratamento e a eliminação desses dados, não raro utilizados de forma ilícita para fins econômicos e políticos, impondo obrigações às organizações e prevendo inúmeros direitos ao titular dos dados, inclusive os usuários da internet, a fim de garantir o exercício de
"direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade" (artigo 1º), aspectos inerentes ao livre exercício da cidadania nos nossos dias. Em razão da importância da proteção de dados pessoais, este direito autônomo e independente ao direito à privacidade, foi inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais da nossa Constituição Cidadã (artigo 5º, inciso LXXIX), em 10/02/2022.
Ao proteger os dados pessoais da pessoa natural, a LGPD garante que informações claras, precisas e facilmente acessíveis a respeito do tratamento desses dados sejam disponibilizadas ao titular, de maneira simples e adequada ao entendimento de diferentes gerações a respeito do tratamento das informações e quando se tratar de titular usuário da internet, a acessibilidade às informações às pessoas com deficiência é consolidada pelo MCI.
Quando solicitada por uma organização a consentir com a coleta e o processamento de seus dados pessoais para determinado fim, a pessoa natural deverá manifestar-se de forma livre, devidamente informada e inequívoca nesse sentido (artigo 6º, inciso VI, da LGPD). Quando isso se der por meio de um
website, a ausência de acessibilidade digital pode induzir o usuário ao erro e consentir mediante desinformação, configurando ato ilícito de responsabilidade da organização e sujeito à penalidade. O não cumprimento das obrigações contidas na LGPD implica o risco de penalidades na esfera administrativa, com possível repercussão judicial civil ou trabalhista. Na lei, há previsão de multa administrativa que pode chegar a 2% do faturamento da empresa, limitada a 50 milhões de reais por infração, além de bloqueio ou eliminação dos dados pessoais.
Quanto aos valores éticos do nosso tempo, um bom norte é a Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital (Bruxelas, 2022), cuja finalidade é promover a transformação digital dando prioridade às pessoas, beneficiando cidadãos e empresas, e contribuindo para uma sociedade e economia justas. A declaração determina que soluções tecnológicas devem respeitar e permitir os direitos das pessoas e promover a inclusão, especialmente, dos idosos, das pessoas com deficiências, vulneráveis, entre outros (Capítulo II).
Vale destacar, que o processo de adesão do Brasil à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cujas tratativas tiveram início em 1990 em razão do fortalecimento do multilateralismo e cooperação econômica entre seus membros, está em fase de discussão e, nessa etapa, o país será avaliado em diferentes setores, inclusive na área digital, vez que os membros da OCDE devem assegurar padrões adequados e efetivos de proteção de dados pessoais por meio de leis e normas de segurança e confiança de usuários de internet e consumidores digitais, em conjunto com o combate à desinformação e a promoção de princípios democráticos e de direitos humanos relacionados às operações digitais.
Diante da transformação digital e das relações sociais do nosso tempo, a promoção da acessibilidade digital às pessoas com deficiência é indispensável ao exercício pleno da cidadania e inerente à integridade das organizações, públicas e privadas, por meio da conformidade às leis e demais normas e aos valores éticos, em especial a justiça, o respeito, a liberdade e a responsabilidade social.
Fonte: Conjur