Depois de dez anos, volta o Código de Processo Penal ao debate, agora com ares de pressa apressada.
Importante que haja um certo consenso de que o novo Código incorpore o sistema acusatório. De pronto, é necessário dizer que o sistema acusatório é, na verdade, um princípio, entendido no sentido de padrão. Princípio é arché. Funda.
Logo, desse princípio se tira os demais elementos que conformam o modo como se processam as pessoas que cometem crimes. Por exemplo, fica vedada prova de ofício, a não ser para beneficiar o réu, uma vez que um código deve levar em conta aquilo que já estava na mitologia grega, especialmente nas Eumênidas, no julgamento de Orestes: o in dubio pro reo.
Nesse ponto, seria de bom alvitre que o CPP deixasse explícita a rejeição ao in dubio pro societate e o famigerado "não há nulidade sem prejuízo". Esses dois adágios — porque não passam disso — são autênticas katchangas (truques retóricos) pelas quais se diz qualquer coisa sobre qualquer coisa. Por qual razão uma dúvida deve ser usada em favor do Estado?
E por qual razão o prejuízo decorrente de uma nulidade não é auto evidente? Se existe nulidade, o prejuízo não depende de demonstração contemporânea do prejudicado. Pode e deve ser declarado a qualquer momento.
Lembro aqui do art. 212 do CPP em vigor, pelo qual o juiz só pode fazer perguntas complementares. Houve um caso (STF, HC 103.525) em que o réu foi condenado a dez anos de reclusão, tendo a prova violado o dispositivo. Foi negado o HC com base no adágio (claro que escrito em francês) de que não há nulidade sem prejuízo. Ora, a própria pena não é o prejuízo? Observação: passados doze anos, está reconhecido que a desobediência a esse dispositivo causa nulidade (absoluta). O que dizer ao réu de dez anos atrás?
Diz o deputado-relator João Campos, em recente reunião com integrantes da magistratura, que o CPP deve ser um instrumento para diminuir a impunidade. Ora, senhor deputado, um CPP deve servir para garantir o devido processo legal em favor do acusado e apresentar as condições para que o leque de garantias constitucionais (art. 5º) sejam efetivas. Códigos de processo não são políticas públicas. Se for por aí, vamos muito mal.
Interessante é que a própria comunidade jurídica parece não gostar de garantias processuais, a não ser quando for a seu favor, pessoalmente. Sugiro uma alegoria. Pense-se o Código de Processo Penal como um protocolo médico. Sempre para salvar e não para matar.
No mais, para além do acima exposto, sugiro um conjunto de emendas ao Projeto (levando em base o substitutivo apresentado pelo Dep. João Campos).
1. Inclusão na parte de prova (art. 194) o que consta hoje no Projeto conhecido como Streck-Anastasia e que também é objeto do PL 6233/2019, do deputado Glaustin Fokus.
Nesse sentido, sugere-se a inclusão de dois parágrafos ao art. 194:
Art. 194. As provas serão requeridas pelas partes.
Parágrafo único. Será facultado ao juiz, antes de proferir a sentença, determinar diligência para esclarecer dúvida sobre prova requerida e produzida por qualquer das partes.
“§1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa;
§2º O descumprimento do § 1º implica a nulidade absoluta do processo”.
É absolutamente necessária a inclusão de um dispositivo que conforme a imparcialidade do Ministério Público. O órgão ministerial não pode ser um “escritório de acusação”. Não é por menos que a Constituição Federal de 1988 conferiu a este as mesmas garantias destinadas à magistratura. Assim o fez porque não se pensava nesse órgão como um instrumento exclusivo para condenar indivíduos, mas também para absolver inocentes. É nesse sentido que a inclusão destes parágrafos – que estão em plena conformidade com a ordem constitucional – concretizam a função ministerial no âmbito de nosso Estado Democrático de Direito.
2. No artigo 11 acrescentar “às diligências em andamento”, verbis:
Art. 11. É garantido ao investigado e ao investigado e ao seu defensor o acesso a todo material já produzido na investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento.
É preciso estipular claramente o que são “diligências em andamento”, a fim de evitar o uso retórico deste termo. Nesse sentido, a inclusão de um parágrafo ao art. 11, no seguinte sentido: “consideram-se diligências em andamento todas aquelas cujo acesso ensejará, de forma clara e inevitável, na ineficácia da medida. A vedação injustificada de acesso, à luz do caput e do presente parágrafo, importará na nulidade dos atos até então praticados”.
O uso do termo “diligências em andamento”, sobremodo, não pode servir de justificativa para suprimir o acesso da defesa ao inquérito policial, a não ser que seja estritamente necessário. E nessa senda não se trata somente de dizer que é necessário. Deve-se fundamentar (claro que resguardada a integridade da diligência), sob pena de nulidade.
3. Exclusão do poder de requisição do Ministro da Justiça:
Art. 52. A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.
§ 1º. A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.
Sugere-se, nesse ponto, a supressão da requisição do Ministro da Justiça para o início da persecução penal. Em que pese tal requisição não vincule o Ministério Público – que permanece com a sua independência – tal previsão é saudosista do período de exceção e, como se viu nos últimos tempos, é utilizada como instrumento de repressão e imposição de temor aos opositores do governo.
4. Alterações nos arts. 187 e 191:
Art. 187. A decretação de nulidade e a invalidação de ato irregular dependerão de manifestação especifica e oportuna do interessado, sempre que houver necessidade de demonstração de prejuízo ao pleno exercício de direito ou de garantia processual da parte, observadas as seguintes disposições:
Art. 191. As nulidades que dependam de provocação devem ser arguidas na primeira oportunidade que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão.
Dois pontos aqui são problemáticos: a positivação do impreciso prejuízo para decretação de nulidade e a preclusão se não o fizer. A proposta aqui é de supressão total dos dispositivos porque, à uma, não se pode falar em preclusão quando há nulidade e, à duas, em virtude da vagueza do “prejuízo”, fundamentalmente porque há maior prejuízo do que ser condenado à margem da lei, como falei antes (ver parte inicial desta Coluna).
5. Alterações no art. 198:
Art. 198. As declarações do coautor ou participe na mesma infração penal necessitam ser confirmadas por outros elementos de prova, colhidos em juízo, que atestem a sua credibilidade.
Parágrafo único. O corréu que, a pretexto de eximir-se de responsabilidade, imputar a prática da infração penal a terceiro, assume a posição de testemunha, sujeitando-se ao dever de dizer a verdade.
Essa previsão é inconstitucional, a não ser que seja firmada no âmbito da colaboração premiada. Não há essa ressalva no texto. Então, não há como positivar algo nesse sentido. Ora, se é corréu – e, em seu interrogatório pode falar o que bem entender para efetivar o seu direito de defesa – não se deve falar em assunção do compromisso de dizer a verdade. Chegaríamos, assim, ao dantesco cenário de existência de ação penal por falso testemunho ajuizada contra réu em ação penal?
6. Alterações no art. 220:
Parágrafo segundo. Constatando o juiz que a ausência injustificada da testemunha deve-se a medida protelatória da defesa, a multa poderá ser aplicada ao acusado ou ao seu defensor, conforme as circunstâncias indicarem de quem é a responsabilidade.
Esse é mais um dispositivo que desprivilegia a advocacia. Ainda existe, com grande força, a ideia de que é o causídico o responsável pela demora na prestação jurisdicional, em função das chamadas “chicanas processuais”. Vivemos em tempos de ampla interligação entre os indivíduos e de grande exposição de todos em redes sociais e afins. Não localizar uma pessoa hoje é algo cada vez mais difícil. Porém, as ações penais seguem durando anos e anos. De quem é a culpa? Do advogado que não é. De todo modo, este profissional não tem ingerência sobre a testemunha, de modo que não pode ser responsabilizado pela sua desídia.
7. Alterações no art. 282:
Art. 282. Em nenhuma hipótese poderão ser utilizadas para fins de investigação ou instrução processual as informações resultantes de conversas telefônicas entre o investigado ou acusado e seu defensor, quando este estiver no exercício da atividade profissional, ressalvados os casos em que o exercicio da atividade profissional represente ou se preste a encobrir atuação delituosa.
Essas ressalvas são sempre perigosas. Afinal, estamos no Brasil. E aqui uma exceção quase sempre vira a regra. Se, por meio de monitoramento, a autoridade policial se depara com conversa entre advogado e cliente — devidamente identificados — ela não deve prosseguir com a interceptação, sob pena de contaminação. Se o Delegado de Polícia toma conhecimento de dados que são caracterizados como sigilosos pela sua essência e, mesmo que não use, o utilize na sua estratégia investigativa, daí já se configura o absoluto desrespeito ao necessário segredo nas comunicações entre advogado e cliente.
8. Alterações no art. 372:
Art. 372. Nenhum ato será adiado, determinando o juiz, quando imprescindível, a condução coercitiva de quem deva comparecer.
Em função do que todos sabemos, condução coercitiva de réu não pode. Então, é preciso colocar uma ressalva nesse dispositivo à vedação da condução para interrogatório. De novo, estamos no Brasil. Quando mais claro, melhor.
9. Alterações nos arts. 477 e 546:
Art. 477. Em seguida, o presidente, dispensando o relatório, proferirá sentença que: (...)
(e) – determinará o início do cumprimento da pena.
Art. 546. Concluido o julgamento colegiado, do qual não caiba recurso ordinário de decisão condenatória ou de confirmação de condenação, o escrivão ou o chefe de secretaria, independentemente de despacho, providencirá o início da execução penal.
Não precisamos dizer muito: são inconstitucionais, pois ferem a presunção de inocência. O STF, nesse sentido, reconheceu isso nas ADCs 43 e 44. Drible da vaca na Constituição.
10. Alterações nos arts. 739 e seguintes:
Referem-se ao habeas corpus. Nesse caso, seria possível a adaptação ao projeto do Código de Processo Constitucional, na medida em que o que está inserido no substitutivo não contempla vários dos avanços necessários a este remédio heroico, principalmente a regulamentação do habeas corpus coletivo.
Como o Projeto está sendo apressado, vai acabar sendo aprovado com um conjunto de problemas. Por exemplo, o Tribunal do Júri poderia ser reformulado. Já muito escrevi sobre isso. Mas parece que algumas tradições inadequadas e deletérias continuam com apoio considerável no parlamento e na comunidade jurídica. Se o relator quiser, estou a disposição para discutir, além das sugestões acima, também sobre o júri. Tenho certeza que Aury Lopes Jr, quem escreveu comigo sobre o tema, também está.
Minhas sugestões foram acostadas com o apoio do deputado Paulo Teixeira, incansável "deputado dos códigos". Espero que o ilustre relator reflita sobre esses temas!
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