Brasil pode adotar sanções econômicas contra Rússia pela agressão à Ucrânia?
É grave a violação às normas imperativas de Direito Internacional pela Rússia, ao ofender a soberania, integridade territorial e independência política da Ucrânia, o que caracteriza um crime de agressão. A comunidade internacional tem evitado recorrer ao uso da força, mas, até o momento, 27 países têm aplicado sanções econômicas unilaterais de uma maneira sem precedentes. O Brasil é um dos nove países dentro do G-20 que não adotou nenhuma medida contra a Rússia, assim como China, Índia, Indonésia, México, Arábia Saudita, África do Sul e Turquia.
Há quem critique a adoção de "sanções" unilaterais, sob o argumento de que são ilícitas por não estarem amparadas pelo multilateralismo. Outros, no entanto, as defendem em razão de se poder adotar contramedidas para cessar um ilícito internacional ou buscar reparação. Não se trata, portanto, de uma punição; por isso, neste artigo, usamos a palavra "sanção" entre aspas (embora alguns países chamem literalmente de sanções). Em caso de contramedidas contra Estados, a questão passa, de um lado, entre admitir medidas unilaterais dirigidas contra quem lhe comete o ilícito ou contra quem comete o ilícito a terceiros; e de outro lado, medidas definidas de modo multilateral.
O Brasil possui lei para cumprir resoluções do Conselho de Segurança que impõem "sanções"; faz parte de Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, cujo artigo 8º permite "sanções" em caso de crime de agressão contra Estado americano; e recentemente editou a Medida Provisória nº 1.098/2022, para buscar compensações tuteladas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), apesar do enfraquecimento do sistema de solução de controvérsias dessa organização. Além disso, há uma série de tratados que, em nome da cooperação internacional penal, permite "sanções" a pessoas e empresas.
No caso da Ucrânia, as contramedidas são tomadas para cessar a agressão promovida pela Rússia. A ação unilateral dos países não diretamente atingidos é, na maior parte, justificada por estarmos diante de uma violação da paz internacional e o Conselho de Segurança estar paralisado pelo poder de veto da Rússia, como membro permanente, o que mina a atuação multilateral e a aplicação do artigo 41 da Carta da ONU, que permite a adoção de medidas que não envolvam o emprego de forças armadas, como a interrupção completa ou parcial das relações econômicas.
É importante mencionar que, caso houvesse resolução do Conselho de Segurança, o Brasil seria obrigado a dar cumprimento imediato, com fundamento na Carta da ONU e na Lei nº 13.810/2019, que dispõe sobre o cumprimento de "sanções" impostas por resoluções do Conselho de Segurança, incluindo a indisponibilidade de ativos de pessoas naturais e jurídicas e de entidades, e a designação nacional de pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo, de seu financiamento ou de atos a eles correlacionados.
Diante da falta de unanimidade dos membros permanentes que impediu o exercício de suas responsabilidades primárias para a manutenção da paz e seguranças internacionais, o Conselho de Segurança adotou a Resolução 2.623 (2022), em 27 de fevereiro de 2022, solicitando uma reunião de emergência da Assembleia Geral.
Esse mecanismo, conhecido como
Uniting for Peace, está previsto na Resolução 377 (1950) e foi criado como uma resposta à estratégia da União Soviética em vetar qualquer resolução do Conselho de Segurança para proteger a Coreia do Sul dos atos de agressão da Coreia do Norte. É utilizado quando o Conselho não pode agir por causa do veto de um dos membros permanentes. O próprio texto da resolução autoriza a Assembleia Geral a fazer recomendações aos membros sobre as medidas coletivas apropriadas, inclusive o uso de força armada, quando necessário, no caso de ruptura da paz ou ato de agressão.
A última vez que esse mecanismo havia sido utilizado foi no conflito Israel-Palestina. Em 1982, a Assembleia Geral (Resolução A/ES-9/1) condenou as ações de Israel e convocou todos os Membros a adotarem as seguintes medidas: abster-se de adquirir ou fornecer a Israel quaisquer armas e equipamentos relacionados; suspender qualquer assistência militar; suspender assistência econômica, financeira, tecnológica e cooperação com Israel; romper com relações diplomáticas, comerciais e culturais; e ainda mais especificamente, cessar imediatamente, individual e coletivamente, todas as relações com Israel, a fim de isolá-lo totalmente em todas as áreas.
Agora, 40 anos depois, em 2 de março de 2022, a Assembleia Geral utilizou esse mecanismo novamente e adotou resolução condenando a invasão pela Rússia por violar o artigo 2(4) da Carta da ONU e determinando o cessar-fogo imediato e a retirada das tropas do território ucraniano (Resolução A/ES-11/L.1). No entanto, não fez nenhuma referência direta e específica sobre a adoção de "sanções" econômicas.
Por derivação (ou por alteração legislativa da Lei nº 13.810/2019), seria possível argumentar que o Brasil, da mesma forma que deve cumprir as resoluções do Conselho de Segurança, deveria também dar cumprimento às medidas adotadas pela Assembleia Geral por meio do mecanismo
Uniting for Peace, caso houvesse menção expressa a sanções econômicas. Por outro lado, resta saber se o texto atual da resolução da Assembleia Geral, lamentando veementemente a agressão cometida pela Federação Russa contra a Ucrânia, em violação ao artigo 2(4) da Carta da ONU, poderia inclusive ser utilizado por si só como fundamento jurídico para "sanções" unilaterais.
No Direito brasileiro, não temos permissão para medidas unilaterais a países que violem direitos de terceiros. Sempre bom lembrar, a esse respeito, a tensão entre os princípios constitucionais da autodeterminação dos povos e o de não intervenção, que rege nossas relações internacionais (artigo 4º, inc. III e IV, da CF), razão pela qual resolvemos por admitir intervenções tuteladas pelo multilateralismo.
No entanto, diante da ausência de resolução das Nações Unidas nesse sentido, indaga-se, sem adentrar ao mérito de questões políticas, se o Brasil poderia unilateralmente adotar "sanções" econômicas contra a Rússia pela agressão à Ucrânia e sob qual fundamento jurídico. À título de comparação, faz-se um breve estudo dos fundamentos jurídicos utilizados em outros países.
Uma primeira distinção que se faz necessária é com relação às "sanções" autônomas adotadas no contexto da União Europeia. Essas medidas foram impostas com fundamento no artigo 29 do Tratado da União Europeia, que permite ao Conselho Europeu adotar medidas contra países, indivíduos, grupos ou entidades não estatais, não pertencentes à União Europeia, quando esses não respeitarem o direito internacional ou os direitos humanos ou prosseguirem políticas e ações que não respeitem o Estado de direito ou os princípios democráticos. A "medida restritiva" é uma contramedida que permite à União Europeia atuar mesmo quando não é ela mesma a atingida.
Os Estados Unidos da América adotam "sanções" econômicas contra a Rússia desde a invasão da Crimeia em 2014. Com fundamento jurídico no
International Emergency Economic Powers Act, uma lei federal de 1977, o presidente pode declarar uma emergência nacional em resposta a qualquer ameaça incomum e extraordinária que ocorra fora dos EUA, podendo regular assim o comércio internacional.
Em 2014, o presidente Barack Obama declarou então uma emergência nacional sob a justificativa de que as ações e políticas de invasão à Ucrânia minam os processos e instituições democráticas na Ucrânia, ameaçam sua paz, segurança, estabilidade, soberania e integridade territorial, constituindo uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos. Recentemente, o Presidente Joe Biden ampliou as sanções contra indivíduos e empresas russas.
Após a invasão à Crimeia, o Canadá também impôs sanções contra a Rússia, tendo como fundamento legal o
Special Economic Measures Act, que permite a adoção de sanções contra um país estrangeiro quando houver uma violação grave da paz e da segurança internacionais que resultou ou pode resultar em uma grave crise internacional.
A Austrália adotou "sanções" unilaterais, com base no
Autonomous Sanctions Act [
and Regulations] 2011, que prevê essa possibilidade quando se trata de assuntos de interesse internacional, com relação a um ou mais países estrangeiros em particular, e que envolva a proliferação de armas de destruição, ameaças à paz e segurança internacionais, atividade cibernética maliciosa, violações graves ou abusos graves dos direitos humanos.
Por sua vez, a Nova Zelândia não possuía legislação nacional que permitisse a adoção de "sanções" autônomas, podendo apenas implementar aquelas adotadas em resoluções do Conselho de Segurança da ONU. No entanto, em 9 de março de 2022, o parlamento neozelandês aprovou a
Russia Sanctions Bill, permitindo a adoção de "sanções" econômicas contra indivíduos, empresas, serviços e bens relacionados à agressão da Rússia.
Houve (e ainda há) grande debate no parlamento neozelandês sobre a necessidade de adoção de uma legislação genérica que permitisse a adoção de "sanções" unilaterais em qualquer situação e não somente no contexto da Rússia. Isso porque alguns partidos criticam essa possibilidade, sob o argumento de que referida legislação enfraqueceria o sistema multilateral da ONU.
Como visto, o Brasil também não possui legislação nacional que permita, a princípio, a adoção de "sanções" unilaterais, estando limitado aos mecanismos adotados pela ONU, OEA ou OMC. Tal fato não impede, no entanto, que o Brasil exerça pressão na comunidade internacional para que as Nações Unidas, ainda que por meio do mecanismo
Uniting for Peace, adotem as medidas coletivas apropriadas, inclusive "sanções" econômicas, a fim de cessar o ato de agressão da Rússia contra a Ucrânia, privilegiando assim o sistema multilateral.
Em seguida, no plano interno, defende-se a alteração da Lei nº 13.810/2019 para que se inclua, de forma expressa, a obrigação do Estado brasileiro em dar cumprimento imediato às medidas adotadas pela Assembleia Geral por meio do mecanismo
Uniting for Peace.
É necessário mencionar ainda que pode haver pedido de cooperação jurídica para que o Brasil cumpra com "sanções" unilaterais adotadas por outros países. Nesse contexto, poderá ser discutida a aplicação de medidas no contexto de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo com base nas Leis nº 13.260/2016 e 9.613/1998. A Carta Circular nº 4.001/2020 do Banco Central enumera situações relacionadas a pessoas ou entidades suspeitas de desenvolvimento com financiamento ao terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa. A agressão russa contra a Ucrânia, contudo, possui outro enquadramento, em que pese, em outras circunstâncias, o envolvimento de empresas ou cidadãos russos com atividades criminosas.
Sob uma outra perspectiva, ainda que o Brasil não adote unilateralmente "sanções" econômicas contra a Rússia, é preciso destacar que atividades econômicas exercidas por empresas brasileiras na Rússia ou na Ucrânia podem ter consequências diretas ou indiretas no conflito armado (ex. suporte militar, logístico ou financeiro, permitir o uso de ativos para abuso e violação de direitos). Ademais, indivíduos e dirigentes de empresas podem eventualmente ser criminalmente responsabilizados por crimes internacionais, inclusive no âmbito do Tribunal Penal Internacional.
Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos que criou uma estrutura de diretrizes com uma distinção clara entre a
responsabilidade das empresas em respeitar os direitos humanos e o
dever dos Estados de proteger os direitos humanos. Ademais, em situações de conflito armado, devem ser respeitadas também as normas do direito internacional humanitário.
Com base nesses Princípios Orientadores, o Brasil estabeleceu inclusive as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, previstas no Decreto nº 9.571/2018, a serem implementadas voluntariamente pelas empresas. Isso porque os Princípios Orientadores ainda não têm força vinculativa como instrumento internacional (
soft law).
No entanto, em 21 de julho de 2020, a Assembleia Geral (Resolução A/75/212) recomendou expressamente as medidas que podem ser tomadas por Estados com relação às atividades de empresas em situações de conflito armado: (1) usar ferramentas políticas para garantir que empresas adotem procedimentos de devida diligência para identificar violações, incluindo informações sobre crédito de exportação, investimentos e financiamentos; (2) oferecer consultoria por meio de embaixadas ou instituições voltadas ao comércio internacional para que empresas respeitem direitos humanos e direito internacional humanitário e (3) investigar ativamente eventuais crimes internacionais cometidos por empresas em zonas de conflito.
Nesse contexto, Estados envolvidos no local do conflito, bem como os Estados de origem das empresas que estão legalmente estabelecidas e/ou que participem de cadeia de valor no local do conflito, devem tomar as medidas necessárias para que empresas não violem essas normas. É evidente assim o dever do Brasil em proteger os direitos humanos e assegurar que empresas brasileiras não violarão normas de direitos humanos e do direito internacional humanitário.
Por outro lado, a extrema pressão da sociedade tem levado inúmeras empresas (Visa, Mastercard, McDonald’s, Starbucks, Coca-Cola, Pepsi, Netflix, etc.) a encerrarem ou suspenderem suas atividades na Rússia de forma voluntária ou em cumprimento de "sanções" já adotadas (e eventualmente a fim de mitigar qualquer risco de responsabilidade futura). Recentemente, a Embraer também anunciou que suspendeu serviços de manutenção e venda de peças para clientes russos e que continuará cumprindo as sanções internacionais impostas à Rússia e a certas regiões da Ucrânia.
Em conclusão, espera-se que o Brasil tipifique o crime de agressão, condene os atos de agressão da Rússia contra a Ucrânia e exerça pressão na comunidade internacional para que as Nações Unidas adotem as medidas coletivas apropriadas, inclusive "sanções" econômicas, bem como implemente políticas e medidas para assegurar que empresas brasileiras não se envolverão em atividades econômicas que violem direitos humanos e direito internacional humanitário no contexto da agressão da Rússia à Ucrânia.
Fonte: Conjur