Combate à violência institucional na esteira da Lei 14.321/2022

O gênero ciências criminais (ciências penais) possui como espécies o Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal. São ciências autônomas e coexistentes, cada qual com sua vertente.

No tocante especificamente à  criminologia, são quatro os objetos que compõe esta, quais sejam: 1) o crime; 2) o autor do crime; 3) o controle social; e 4) a vítima. Esta última apenas passou a ganhar maior relevo após a segunda guerra mundial, dando origem ao estudo da vitimologia, quando houve um período de revalorização do papel da vítima. Foi a partir da década de 1950, diante do sofrimento imposto aos grupos vulneráveis (ciganos, judeus, homossexuais, etc) pelo movimento nazifascistas durante a 2ª Guerra Mundial, que verificou-se um redescobrimento do papel da vítima, sendo sua importância retomada com uma visão mais humanitária por parte do Estado, voltada à tutela de seus direitos e garantias.

Nesse sentido, a doutrina distingue três tipos clássicos de vitimização. A vitimização primária, que decorre do próprio fato crime e nos resultados diretos que este agirá na vítima. A vitimização secundária que é o produto da relação entre a vítima e o sistema jurídico penal. Na prática, se concretiza com a ação dos responsáveis -os agentes estatais - pelo processo de resolução de conflitos sem a devida consideração em relação às expectativas e ao sofrimento da vítima.  E a vitimização terciária, tratando-se daquela em que o ofendido padece de afastamento da receptividade social e torna-se vítima justamente daqueles que o cercam. Trata-se da estigmatização da vítima.

revitimização, inserida no contexto da violência secundária, está intrinsecamente ligada ao instituto da violência institucional, a qual pode ser definida como a violência praticada por órgãos e agentes públicos, no exercício de suas funções que deveriam responder pelo cuidado, proteção e defesa do cidadão. Tais condutas ainda são resquícios de uma sociedade na qual o autoritarismo e patriarcalismo estavam — e ainda se fazem presentes, sendo que com menor intensidade — fortemente institucionalizados até o advento da Constituição Federal, sendo este o sentido da Lei nº 14.321/2022.

Lei nº 14.321/2022 e seus principais aspectos

Apesar da violência institucional ainda ser uma realidade presente no Brasil, o seu combate tem recebido nos últimos anos uma maior atenção por parte da sociedade e do legislador, o que se depreende por meio das recentes normas que ingressaram no ordenamento jurídico pátrio — leis n.º 13.431/2017; 13.505/17 e nº 14.245/21. Todo esse arcabouço legislativo na direção de observar as seguintes diretrizes: a) a salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional do(a) depoente; b) garantia de que em nenhuma hipótese haverá o contato direto com os investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas. c) não revitimização da depoente evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como o questionamento sobre a vida privada.

Na mesma toada, indo ao encontro das normas supramencionadas, foi sancionada a Lei 14.321/2022. Trata-se da primeira grande alteração a recente Lei de Abuso de Autoridade — Lei nº 13.869/2019 —, para tipificar o crime de violência institucional, acrescentando o artigo 15-A ao referido diploma:

"Violência Institucional

Artigo 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I – a situação de violência; ou

II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena — detenção, de três meses a um ano, e multa.

§1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

§2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro".



Conforme pode-se desde logo perceber, diferentemente dos projetos de lei que tratavam sobre o assunto em questão, o destinatário específico, direto e principal da novel norma é o agente público — sujeito ativo, conforme o artigo 2º, da Lei 13.869/2019, podendo haver concurso de agentes com particulares (extraneus), a depender do caso concreto.

No tocante ao sujeito passivo, tem-se a dupla subjetividade. De um lado o próprio Estado (Poder Público) que tem a sua imagem e credibilidade ofendido; do outro a pessoa que está sendo submetida ao processo revitimização, ou seja, a vítima de infração penal ou testemunha de crimes violentos.

vítima, no contexto da lei em análise, refere-se ao indivíduo, que é prejudicado de forma direta em decorrência da ofensa ou ameaça ao bem tutelado pelo Direito. Enquanto que testemunhas são terceiros, perante o processo, que relatam oralmente ao juiz as suas lembranças sobre os fatos ocorridos à medida que sejam questionadas a seu respeito.

Trata-se, por tanto, de crime bi-próprio, haja vista que para ser considerado agente ativo deve-se ter a condição de autoridade ou agente público e para a condição de agente passivo, necessário que seja vítima de "infração penal" ou testemunha de "crimes violentos".

Concomitantemente, para a configuração do presente delito é mister a presença de um elemento subjetivo específico, além do dolo, nos termos do artigo 1º,§1º da Lei de Abuso de Autoridade — Lei nº 13.869/2019, o qual reza que: "As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda, por mero capricho ou situação pessoal". Trata-se de uma norma penal de extensão que abrange, pelo menos em regra, todas as figuras delituosas previstas no citado diploma normativo. Sobre o referido elemento subjetivo, Renato Brasileiro, leciona o seguinte: "Sua presença (ou não), portanto, será de todo relevante para diferenciar o agente que cometeu um erro, ou mesmo uma ilegalidade de boa-fé".

Em relação as regras de competência, aplicar-se-á ao delito em questão às regras gerais condizentes à matéria, função e localA ação penal é publica incondicionada, aplicando-se a regra geral para os crimes previstos na Lei nº 13869/2019. Na lição de Paulo Alves Franco: "É aquele que não exige a manifestação do ofendido por meio de representação ou queixa — crime para que ela seja proposta com é ocaso da ação penal privada", cabendo, no caso de inércia do Poder Público, a ação penal privada subsidiária da pública, nos termos do artigo 3º, §1º e 2.º, da lei nº 13.869/2019.

No mais, aplica-se ao novo tipo penal as mesmas regras atinentes ao cometimento dos crimes previstos na lei de abuso de autoridade — 13869/2019, destacando-se os efeitos da condenação e das penas restritivas de direito a serem suportadas pelo autor da violência institucional (artigo 4º e 5º) e a independência das sanções de natureza penal, civil e administrativa (artigo 6º).

núcleo do tipo (verbo da descrição da conduta na lei penal) é submeter, que significa retirar de alguém sua liberdade de autodeterminação. Submeter  significa, então, constranger/ subjugar, alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. O novo artigo 15-A, da Lei nº 13.869/2019, visa coibir essa submissão da vítima de infração penal ou testemunha de crimes violentos a reviverem de forma desarrazoada, inadequada e inoportuna a situação de violência que no caso concreto lhe levou à referida condição -de vítima ou testemunha (artigo 15-A, I) ou a reviver outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização (artigo 15-A, II). Assim sendo, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade serão os grandes norteadores na aplicação do tipo penal em comento.

A primeira hipótese  submissão da vítima de infração penal ou testemunha de crime violento a reviverem a situação de violência – restará caracterizada, por exemplo, se a autoridade policial repetir de forma sucessiva e prolongada ao interrogatório de uma vítima de estupro. Nesse ponto (artigo 15-A, I) não haverá maiores dificuldades na aplicação da lei, uma vez que pressupõe-se referência a "violência física" pode ser conceituada como "violência à pessoa, também denominada de vis corporalis ou vis absoluta, significa a violência física empregada pela força de alguém , sendo desnecessário que da violência resulte lesão corporal".

Desse modo, desde logo, infere-se que se uma pessoa está passando por um processo de "revitmização" como testemunha (não a vítima) de um crime que não tenha sido cometido com violência, por exemplo um furto (artigo 155 do Código Penal) ou uma ameaça (artigo 147 do Código Penal), mesmo que o agente público realize "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade" a situação experimentada.

Quanto à segunda hipótese (artigo 15-A, II), há de se verificar de forma mais pormenorizada o caso a ser cotejado, uma vez que situação "potencialmente geradora de sofrimento ou estigmatização" trata-se de uma expressão vaga e de conceito indeterminado, necessitando-se aferir mais profundamente o íntimo da vítima ou da testemunha. O exemplo a ser dado, foi no caso que ensejou a propositura do Projeto de Lei, com base no caso "Mariana Ferrer", onde o advogado do acusado teria lhe feito várias indagações à vítima, que levara a mencionada suposta vítima de estupro a reviver as circunstâncias do episódio e condições à época do crime, estigmatizando-a como uma modelo de casa noturna.

O espírito da lei vai além, prevendo duas formas majoradas do delito em questão, no sentido de coibir não apenas a revitimização em si, mas  também preocupando-se em evitar a intimidação das vítimas por parte de terceiros, com a conivência das autoridades (artigo 15,§1º), bem como a intimidação a serem concretizadas pelas próprias autoridades. É o que preconiza os artigos 15,§1, a qual prevê a forma majorada do delito: "se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 e 15,§2.º: Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro".

No presente dispositivo a testemunha de crimes violentos, ao contrário do que ocorreu no caput não foi contemplada, revelando-se inviável, pois, qualquer analogia, que in casu, seria evidentemente in malam parte.

Consuma-se o delito do artigo 15-A, no exato momento em que o agente público submete à vítima de infração ou a testemunha de crime violente às indagações, a despeito da pessoa ter manifestado de alguma forma, expressa ou não, seu interesse em não reviver aquelas situações por meio dos seus depoimentos. Enquanto que na forma majorada, por meio das intimidações, fazendo com que a vítima sinta-se amedrontada ou temerosa em dar seu depoimento, seja por meio de provocações ou ameaças do agente. Por se tratar de delito unissubsistente, não nos parece possível a configuração da tentativa, salvo se eventualmente o interrogatório for feito por escrito (verbi gratia surdo-mudo).

Entretanto, apesar do recrudescimento da lei no combate à violência institucional, mesmo na sua forma majorada, tratar-se-á de um crime de menor potencial ofensivo — tendo em conta que a pena máxima não é superior a dois anos. A competência é portanto dos Juizados Especiais Criminais, aplicando-se o procedimento comum sumaríssimo. Como admite transação penal, bem como os demais institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/95, não será possível a celebração do acordo de não persecução penal, ex vi do artigo 28 -A,§2.º do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/19.

Conclusão

A Lei nº 14.321/22 não se trata de uma completa novidade legislativa, haja vista que já há outros diplomas legislativos que tipificam a violência institucional, conforme demonstrado nas linhas acima.  Entretanto, sua previsão específica na Lei de Abuso de Autoridades, indubitavelmente vem a incrementar o combate contra a essa prática que ainda é, infelizmente, corriqueira e não se coaduna com o Estado de Direito democrático e nem com o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse mesmo sentido, não se pode olvidar que todos os esforços do legislador serão em vão, caso não haja uma real mudança de consciência de que as autoridades estão imbuídas de suas funções, deveres e prerrogativas no sentido de servir ao Estado e à sociedade, e não o contrário.

Fonte: Conjur

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