Como o constitucionalismo do século XX mudou o direito de propriedade

Contando com 102 anos de idade, a Constituição de Weimar, promulgada em 11 de agosto de 1919, é precursora na garantia de direitos fundamentais e sociais, como a liberdade e a igualdade, além de sua notável influência mundo afora. Se seu fim é marcado pela ascensão do nazismo ao poder na Alemanha, em 30 de janeiro de 1933, o conteúdo, as ideias e a luta por sua efetivação inspiram o constitucionalismo até os dias atuais.

O conceito de democracia econômica (Wirtschaftsdemokratie), que complementaria aquele de democracia política, tinha no seu centro a perspectiva de fazer do cidadão político, que poderia votar e ser votado em eleições livres e iguais, também um cidadão econômico que tivesse acesso à vida digna, produto de seu trabalho. É o registro de Gilberto Bercovici: na Alemanha, procurou a República de Weimar fazer "ao mesmo tempo o cidadão do Estado (Staatsbürger)" também um "cidadão da economia (Wirtschaftsbürger)".

A atual Lei Fundamental alemã recepcionou Weimar em muitos aspectos. E esta recepção se estendeu ao constitucionalismo dirigente da Europa Ibérica, nos anos 70, e chegou na América Latina, na década seguinte, na esteira dos processos de redemocratização após as ditaduras militares que dominaram este continente desde o final dos 50 do século XX. A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, promulgada quase setenta anos após a Weimarer Reichsverfassung, também recebeu esta influência.

Parece suficiente dizer que a disposição weimariana segundo a qual o poder do Estado vem do povo (Die Staatsgewalt geht vom Volke aus) — a inaugurar o texto constitucional alemão — repete-se em todas as Constituições brasileiras posteriores à de Weimar sob a rubrica de que todo o poder emana do povo . Também na Constituição de Weimar o constituinte brasileiro de 1934 se inspirou para firmar o modelo federativo e diversos direitos trabalhistas e sociais.

Para Lênio Streck, em entrevista concedida à ConJur, a Constituição de Weimar foi ruptural porque não diz "o que é" ou "quais são os limites" do Estado: a partir dela, há um "fim" (no sentido de finalidade) ao Estado. "Ela inaugura, junto com a [Constituição] do México, de 1917, aquilo que se chamou de constitucionalismo social, colocando o Estado como promovedor de políticas públicas".

Um dos notáveis pioneirismos da Constituição de Weimar é a definição do direito de propriedade. Além de garanti-la, o texto constitucional impõe que seu uso deve se destinar, também, ao bem comum, obrigando a figura do proprietário. Por isso a redação do artigo 153, ao final: "propriedade obriga. Seu uso deve igualmente estar a serviço do bem comum". Ora, eis o teor dos incisos XXII e XXIII da Constituição brasileira: "é garantido o direito de propriedade" e "a propriedade atenderá a sua função social", respectivamente.

No mesmo sentido a Lei Fundamental de Bonn, promulgada em 23 de maio de 1949, a estabelecer, no artigo 14 (2), que a propriedade, cujos conteúdos e limites devem ser definidos por lei, é garantida e que obriga, de modo que sua utilização deve servir ao bem comum: "propriedade obriga. Seu uso deve servir ao bem da comunidade". Assim, também a expropriação só é lícita quando efetuada para o bem comum.

No Brasil, a constitucionalização do direito de propriedade não se deu em 1988: desde a Constituição Imperial de 1824, a propriedade é considerada direito fundamental, antes mesmo da promulgação da Weimarer Reichsverfassung. O inciso XXII do artigo 179 estabelecia, já àquela época, ser garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. O regime da propriedade foi mantido pela primeira Constituição do Brasil República, em 1891, na forma do §17 do artigo 172: garantia-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a propriedade em sua plenitude, excetuados os casos de desapropriação .

Em 1934, conservou-se a fórmula da "inviolabilidade", mas com o adendo de que o exercício do direito de propriedade não poderia se dar contra o interesse social ou coletivo — inovação atribuída à influência da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar. A Constituição de 1937 conservou o direito à propriedade, retirando, contudo, o condicionamento de observância ao interesse social ou coletivo. A premissa foi, depois, retomada no texto constitucional de 1946, cujo artigo 147 dispunha: "o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social". Finalmente, as Constituições brasileiras de 1967 e 1969, concretizando o caminho traçado pelo constitucionalismo do século XX, introduziram formalmente no sistema jurídico o princípio da função social da propriedade como fundamento da ordem social e econômica.

As palavras de um texto constitucional são, por óbvio, importantes. Mas o seu conteúdo é que expressa o sentido material para aplicação. A leitura de qualquer das constituições, desde aquela de Weimar até a brasileira de 1988, deixa fora de questão seu conteúdo dirigente e intervencionista. É esse contexto que alimentará também o direito de propriedade. Interpretação e legislação civilísticas não podem deixar de dialogar com tais conteúdos constitucionais, o que não significa perda de autonomia de nenhum destes ramos do Direito. Uma vez que o direito de propriedade não é direito natural, é construído a partir de relações econômicas, políticas e sociais em qualquer sociedade, fazer com que este direito se submeta à racionalidade constitucional nada mais significa do que lhe dar sentido próprio, inserido na mesma ordem constitucional.

Não se trata de defender a eficácia direta dos direitos fundamentais em relação aos particulares, sobretudo por ser indispensável, no caso civilístico, a filtragem dos direitos fundamentais pelo direito civil. A autonomia privada e os elementos negociais havidos entre as partes em relação à propriedade hão de ser garantidos, inclusive porque o Código Civil de 2002 os consagra em sua Parte Especial (Livro III, Título III); a sua preservação, contudo, há de ser compatibilizada, no que diz respeito aos contornos públicos das relações estabelecidas a partir do direito à propriedade, com os mandamentos constitucionais. "Instituto de Direito Civil — e a ele até hoje vinculado —, a propriedade é também matéria de Direito Constitucional, desde os primórdios do constitucionalismo".

Os textos constitucionais, nessa ordem, garantem a tranquilidade, além de possuírem profundo sentido humanista: procuram oferecer chances reais de efetiva participação de todos nos bens produzidos numa dada sociedade. Nada mais efetivo em favor do próprio direito de propriedade do que a garantia de sua estabilidade.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

Fonte: Conjur

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