Considerações sobre o consumidor e sua relação com o cheque
Em tempos de PIX, escrever sobre cheque pode parecer uma ideia antiquada, mas traz questões muito relevantes e novas a serem discutidas.
Não há como negar que os cheques tiveram seu uso diminuído sensivelmente ao longo dos últimos anos. A quantidade transações com cheques saiu de 1,6 bilhões (2011) para 381 milhões em 2020. O volume envolvido, apesar de inegavelmente em queda, não é desprezível, o que mostra que ainda há importância no assunto.
Prova disso é a reportagem da
Folha de S.Paulo de 29/1/2021 com o título "Os cheques persistem como opções de pagamento no Brasil", na qual o CEO da
fintech Certus — Fábio Ieger — afirma que
"é comum o cheque mudar de mão, quem deposita não é quem o recebeu".
Os títulos de crédito, como o cheque, nasceram para facilitar a vida dos agentes econômicos e se difundiram especialmente por sua facilidade de negociação, viabilizando a agilização da circulação das riquezas. Vale dizer, com os títulos de crédito, os credores conseguem receber antecipadamente, ao menos uma parte do valor que receberiam só no futuro. Isso também vale para o cheque, especificamente no caso dos cheques pós-datados. Os títulos de crédito, como um todo, representam, em última análise, "instrumentos de circulação indireta da riqueza".
Essa utilização dos títulos de crédito para agilização da circulação de riquezas só se tornou viável porque quem recebe o título do crédito do credor original é bem protegido pela legislação, desde que esteja de boa-fé. Justamente por isso, o título de crédito
"encontra mais interessados em adquiri-lo do que encontraria se fosse diferente o meio de documentação".
Imagine-se que João contratou José para que este fizesse e instalasse, em sua casa, móveis planejados. No caso, João representou sua dívida com José em seis cheques pré-datados, ou seja, títulos de crédito. José endossou esses cheques para Maria, terceira de boa-fé, que passou a ser credora de João, em razão dos cheques. Ocorre que José não entregou os móveis planejados e, por isso, João sustou o pagamento dos cheques, os quais foram devolvidos. Em razão do não pagamento dos cheques, Maria promove uma ação de execução contra João. Nessa execução, por se tratar de um título de crédito, sempre se entendeu que Maria deveria ser protegida, por ser uma credora de boa-fé, e terá o direito de receber os cheques de João, o qual terá que busca o ressarcimento dos prejuízos contra José.
Essa proteção ao terceiro, credor de boa-fé, decorre dos princípios da autonomia e da abstração. Esses princípios significam que o credor de boa-fé não será afetado por fatos que digam respeito aos credores anteriores (inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé), nem pelos problemas do negócio jurídico (exemplo: contrato) que deu origem ao título. Por isso, no exemplo acima, Maria está imune ao descumprimento do contrato por José, tendo seu direito protegido, justamente por sua boa-fé. Foram esses princípios que permitiram o desenvolvimento dos títulos de crédito como instrumentos de circulação de riquezas.
A jurisprudência, ainda que reconhecesse uma relação de consumo entre João e José, não reconhecia, majoritariamente, Maria como parte dessa relação de consumo e optava por sua proteção, uma vez que a aplicação das normas sobre os títulos de crédito caminhava nesse sentido. Como afirmou o Ministro Luis Felipe Salomão, a
"normatização de regência busca proteger o terceiro adquirente de boa-fé para facilitar a circulação do título crédito, pois o interesse social visa proporcionar a sua ampla circulação, constituindo a inoponibilidade das exceções fundadas em direito pessoal do devedor a mais importante afirmação do direito moderno em favor de sua negociabilidade". A razão de ser dos títulos de crédito está nessa proteção.
A Lei nº 14.181, de 1º de julho deste ano, trouxe uma novidade muito importante que pode afetar toda a lógica por trás da subsistência dos títulos de crédito. A referida lei inseriu um artigo 54-F no Código de Defesa do Consumidor, que considera conexos, coligados ou interdependentes os contratos referentes ao fornecimento de produtos ou serviços e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento, desde que o fornecedor do crédito recorra aos serviços do fornecedor do produto ou serviço ou se o crédito foi fornecido no local da atividade empresarial ou no local da celebração do contrato principal. Um bom exemplo seria o fornecimento do financiamento para aquisição de veículos, novos ou usados, no mesmo local da venda dos veículos.
O fato de os contratos serem conexos, coligados ou interdependentes, trouxe uma interdependência entre esses contratos, com impactos relevantes. Assim, se for exercido o direito de arrependimento no contrato principal, o contrato acessório de crédito será automaticamente resolvido. Além disso, no caso de invalidade ou a ineficácia do contrato principal, contaminará o contrato de crédito conexo, resguardando ao fornecedor do crédito o direito de receber os valores fornecidos diretamente do fornecedor do contrato principal.
A grande questão, porém, nos casos de descumprimento de obrigações pelo fornecedor do contrato principal. Nesses casos, fica assegurado ao consumidor o direito de requerer
"a rescisão do contrato não cumprido contra o fornecedor do crédito" (CDC — artigo 54-F, §2º). Esse direito de requerer a rescisão do contrato contra o fornecedor do crédito também é cabível
"contra o portador de cheque pós-datado emitido para aquisição de produto ou serviço a prazo" (CDC — artigo 54-F, § 3º, I). Em outras palavras, o teor do dispositivo leva a crer que o consumidor não será mais obrigado a pagar aquele cheque, nos casos de inexecução do contrato principal, ainda que o cheque esteja nas mãos de terceiros.
Ao que parece, o CDC afastou a aplicação da proteção ao terceiro de boa-fé, portador do cheque, nos casos em que o negócio de origem é uma relação de consumo e foi descumprida pelo fornecedor do contrato principal. Em última análise, optou-se por proteger o consumidor, nesses casos, em detrimentos dos terceiros que venham a adquirir os cheques pós-datados emitidos pelo consumidor. Tal intepretação, mais favorável ao consumidor, já era defendida por Fábio Ulhoa Coelho, que afirma que
"o consumidor é um sujeito vulnerável e, em razão da proteção que lhe assegura o CDC, não cabe atribuir-lhe o risco de 'primeiro pagar e depois repetir'".
O Direito sempre tem de lidar com escolhas entre interesses dignos de proteção e optar pela prevalência do valor que for considerado mais importante. Se a escolha do Direito, por muito tempo, foi pela proteção do terceiro de boa-fé, agora, parece ter havido uma mudança de rumo, prevalecendo a proteção ao consumidor como parte vulnerável. Não se nega a legitimidade da proteção do consumidor, mas, talvez essa escolha aumente o custo do crédito para o próprio consumidor, na medida em que a utilização de um meio de financiamento — o cheque pós-datado — deixará de existir.
Fonte: ConJur