Cremos em mitos ou os usamos para justificar nossas crenças jurídicas?

Resumo: Acreditamos, mesmo, que haja uma relação da prevaricação com o "crime de hermenêutica"?

Na semana passada comentei uma cautelar deferida no STF na ADPF 991, que tem como pano de fundo o "crime de hermenêutica" no Direito brasileiro.

Nessa ADPF, uma entidade (Conamp) impugnou, mais de 70 anos depois, o velho artigo 319 do Código Penal, que trata do crime de prevaricação.

A cautelar foi concedida, para, segundo o voto, proteger a independência funcional de promotores e juízes, que não poderiam se ver ameaçados por sustentarem entendimentos minoritários (sic).

Volto ao assunto porque, confesso, não entendi até agora qual foi efetivamente o objeto da ADPF. A autora requereu a suspensão da eficácia do preceito, "especificamente na acepção que possibilita o enquadramento da liberdade de convencimento motivado dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário como satisfação de 'interesse ou sentimento pessoal’ ou como incidente no tipo objetivo, na modalidade 'contra disposição expressa de lei', para fins de tipificação como crime de prevaricação da conduta daqueles agentes que, no exercício licito e regular da atividade-fim dessas instituições, e com amparo em interpretação da lei e do direito, defendam ponto de vista em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos".

Por qual razão haveria periculum in mora? E fumus boni juris? Por causa da lei do abuso, de 2019? Mas o objeto é o art. 319, matusalém no direito brasileiro. E quantos juízes e membro do MP estariam sendo processados e, perigosamente, correndo o risco de serem condenados por "crime de hermenêutica"? Correriam riscos juízes e membros do MP?

De todo modo, para bem argumentar — e esse é o papel da doutrina — na coluna passada perguntei se seria ruim ou antidemocrático um dispositivo penal punir atuação ou omissão — de promotor ou juiz — "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".

Também não consegui encontrar no dispositivo do artigo 319 algum trecho em que se pune atuação ou omissão "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" como uma restrição a sustentar entendimentos jurídicos minoritário.

Não me parece necessário proteger o assim dito "entendimento jurídico minoritário". Se há um entendimento jurídico, ainda que minoritário, então não se trata de interesse ou sentimento pessoal. Bom, se é jurídico, está salvaguardado e aí está o ponto: o que não está resguardado é o entendimento antijurídico.

No texto, chamei a atenção para a existência do § 2º do art. 1º da Lei 13.869/2019, que dispõe que "a divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade".

O que ocorre é que, no Brasil, qualquer tentativa de limitação e controle de poder de juízes e membros do MP é vista como "antidemocrática". Lembro de quando queriam que Dilma vetasse o art. 489 do CPC e escrevi uma carta à presidente pedindo para não vetar. Também a ConJur fez interessante matéria sobre o tema.

Estranho que se diga que a punição ao crime de prevaricação seja vista como uma ameaça ao livre convencimento. Por que o livre convencimento sempre é usado como álibi nessas circunstâncias? Se temos dúvidas, simplesmente podemos propor a seguinte pergunta: desde quando o livre convencimento pode superar a legalidade e a constitucionalidade? O assunto está detalhado na coluna acima especificada.

Ademais, alguém imagina o livre convencimento sendo utilizado como argumento para deixar de aplicar uma garantia processual (que é uma taxação)? Algo como "embora a prova seja ilícita, tenho, para mim, por meu livre convencimento, que o réu cometeu o delito e por isso deve ser condenado" Pode? Não? Então, qual é a função e fundamento do LC? Simples: para que se exerça um livre interpretar.

O que a decisão cautelar na ADPF 881 parece garantir, a pretexto das melhores intenções, é uma espécie de "excludente de ilicitude" hermenêutica.

Somos um dos países com maiores dificuldades em constranger (epistemologicamente) decisionismos, punir e reparar abusos judiciais.

A questão que temos de enfrentar é: em uma democracia, o Direito não pode ser "uma questão de opinião".

E não me parece que o Supremo Tribunal deva incentivar esse tipo de pensamento exposto na ADPF 881 pela Conamp.

Numa palavra final. Não há dúvida de que o Direito está repleto de mitos e crenças equivocadas como verdade real (que não resiste a dez segundos de discussão filosófica) e livre convencimento (antes que se alegue o que se pratica em outros países, sugiro a leitura dos verbetes Livre Convencimento e Livre Apreciação da Prova, do meu Dicionário de Hermenêutica — há uma extensa pesquisa sobre o tema).

Finalmente, para quem gosta de teoria da mente, trago aqui um raciocínio de Hugo Mercier, em seu livro "Not Born Yesterday", que aqui adapto ao Direito: não é porque os lidadores do direito acreditam em ficções e mitos jurídicos que elas escrevem e sustentam coisas erradas e antijurídicas; pelo contrário, é para justificar as decisões erradas sobre o que é o Direito que eles se apegam a essas ficções e mitos. Talvez por isso Mercier afirme que contamos com mecanismos sofisticados de avaliação e aceitação de crenças.

Por vezes, penso que aquilo que Mercier busca comprovar em seu famoso livro não se aplica ao Direito. No livro, Mercier, contrariando a expressão "nasce um otário a cada segundo", sustenta que humanos não somos uma espécie ingenuamente crédula. Fôssemos, a seleção natural já teria assegurado nossa extinção. Seríamos, assim, mais sofisticados para aceitação de crenças, diz. Bom, é um livro de mais de 400 páginas. Em breve farei uma análise mais detalhada — para falar de "Mercier e o Direito brasileiro".1

De todo modo, para explicar o comportamento do ser humano, Mercier distingue o que chama de crenças reflexivas das intuitivas. As primeiras dizem respeito a coisas que não afetam diretamente nossas vidas. Por exemplo, crer que a Terra é plana não muda nosso dia a dia. Mas ninguém que acredita que a lei da gravidade é uma fraude se atira de um precipício. O custo dessa crença seria proibitivo. Talvez por isso não existam grupos de WhatsApp de antinewtonianos...

Quais seriam as crenças reflexivas e quais seriam as crenças intuitivas no Direito? A ver. Em outra coluna falarei sobre isso. Isso merece reflexão. Por ora, fico com a pergunta do título desta coluna: Acreditamos em mitos no Direito ou os usamos para justificar nossas crenças jurídicas?

Fonte: Conjur

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