Dedico o segundo artigo sobre o impacto da pandemia de Covid-19 no direito concorrencial publicado nesta coluna a reflexões acerca das consequências da Lei 14.010/2020 para o controle de condutas anticoncorrenciais1. O seu art. 14, caput, determinou a cessação da eficácia de duas infrações específicas: o preço predatório (inciso XV do art. 36, § 3º da Lei nº 12.529/2020) e a cessação parcial ou total de atividades sem justa causa comprovada (inciso XVII do art. 36, § 3º da Lei nº 12.529/2020)2.
A norma criou uma isenção antitruste: ainda que uma empresa pratique algumas das condutas descritas e ela tenha impacto concorrencial (ou seja, possa produzir alguns dos efeitos previstos no caput do art. 36 da Lei n. 12.529/2011), não haverá a subsunção da conduta ao tipo infração da ordem econômica.
Porém tal isenção é limitada no tempo, abrangendo apenas o período compreendido entre 20 de março de 2020 e o dia 31 de dezembro de 2020, que foi a data de cessação dos efeitos do Decreto Legislativo nº 6/20203.
Em relação ao preço predatório houve empresas que adaptaram plantas produtivas para fabricarem álcool em gel e doarem parte da produção para auxiliar na prevenção a Covid-19. Igualmente, diversos agentes engajaram-se em campanhas de doação de produtos ou prestação gratuita de serviços para atendimento de pessoas carentes.
A rigor, tais condutas, não seriam passíveis de capitulação como infração da ordem econômica, já que dificilmente alcançariam escala apta a produzir efeitos e, ainda que alcançassem, estariam amplamente justificadas, na medida em que a conduta visava auxiliar o combate à pandemia.
No que tange à interrupção unilateral de oferta, cumpre destacar que houve a cessação total ou parcial de atividades de diversas empresas em razão das medidas de quarentena estabelecidas ou pela ausência de insumos ou até mesmo em virtude da queda abrupta da demanda, o que aponta para a existência de justa causa apta a afastar o potencial infrativo.
Porém, ainda que os exemplos descritos não configurassem infração da ordem econômica mesmo sem a isenção, é inegável que o art. 14, caput, da Lei nº 14.010/2020 aumentou a segurança jurídica em relação à licitude de tais iniciativas, sendo meritória a sua promulgação.
O dispositivo que gera maior desafio hermenêutico é o § 1º do art. 14 da Lei 14.010/2020, ao estabelecer que “na apreciação, pelo órgão competente, das demais infrações previstas no art. 36 da Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, caso praticadas a partir de 20 de março de 2020, e enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, deverão ser consideradas as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19)”.
Diversos países efetivaram ressalva semelhante, normalmente por intermédio de suas autoridades de defesa da concorrência, que emitiram comunicados esclarecendo que levariam em consideração as circunstâncias excepcionais da pandemia na apreciação de condutas, especialmente a atos de colaboração entre agentes econômicos relacionados a mitigar os efeitos deletérios da pandemia de Covid-194.
A excepcionalidade estabelecida pelo § 1º do art. 14 da Lei nº 14.010/2020 também é temporária, sendo aplicável exclusivamente a condutas praticadas durante o período compreendido entre 20 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020.
Ao contrário do que foi efetivado no caput do art. 14 da Lei 14.010/2020, o seu § 1º não estabelece isenção antitruste a qualquer conduta. A norma efetivou o dever da autoridade antitruste analisar as circunstâncias excepcionais das crises sanitária e econômica derivadas da pandemia na análise da subsunção da conduta ao tipo infração da ordem econômica.
É uma qualificação da regra da razão, ou seja, na ponderação da razoabilidade da conduta deverá ser analisada se ela pode ser justificada em virtude de situação extraordinária derivada da pandemia de Covid-19.
A conduta deve guardar estrita relação de causalidade e proporcionalidade com as circunstâncias da crise associada à pandemia de Covid-19. Assim, deverá haver extremo rigor para que não se tolere comportamentos oportunistas que utilizem a pandemia como pretexto para a prática de condutas anticompetitivas.
No que tange às condutas unilaterais, é mais fácil delinear o alcance da ressalva, já que elas se submetem necessariamente à ponderação dos efeitos causados sobre a concorrência e da razoabilidade da conduta (ou seja, ao paradigma do ilícito pelos efeitos).
Neste contexto, o investigado por conduta praticada no período de 20 de março a 31 de dezembro de 2020 poderá alegar em sua defesa que o ato praticado é justificado em razão das circunstâncias excepcionais da pandemia.
Seria o hipotético exemplo de fabricante de insumos para a produção de álcool em gel impor limite de aquisição para cada um dos seus clientes, a fim de contemplar a todos e evitar que algum deles fique desabastecido. A eventual recusa de venda de um limite superior ao estabelecido não teria o condão de ser enquadrada como infração da ordem econômica, não sendo passível de tipificar a conduta descrita no art. 36, § 3º, XI, da Lei 12.529/2011.
A principal dúvida é se condutas colusivas também estariam contempladas pela excepcionalidade estabelecida pelo § 1º do art. 14 da Lei nº 14.010/2020.
A indagação tem muita pertinência, uma vez que há consenso entre as principais autoridades de defesa da concorrência do mundo de que o cartel é a mais grave das condutas anticoncorrenciais, por uniformizar as principais variáveis de mercado, restringir o bem-estar do consumidor e limitar a inovação5.
Por outro lado, tanto a doutrina6 como os comunicados das autoridades de defesa da concorrência de diversos países foram enfáticas quanto à necessidade de intensificação dos atos de colaboração entre as empresas como medida de contornar os efeitos mais agudos da crise derivada da pandemia de Covid-19, sobretudo as ameaças às linhas de produção7.
Neste contexto, cabe indagar se as "circunstâncias excepcionais da pandemia" permitiriam que o Cade deixasse de punir cartéis eventualmente constituídos no período compreendido entre 20 de março e 31 de dezembro de 2020.
As respostas no âmbito do direito da concorrência normalmente demandam uma análise casuísta e não generalista, na qual se leva em consideração as características peculiares do caso concreto investigado.
Porém, é possível sim traçar alguns parâmetros interpretativos sobre a possível aplicação da exceção traçada pelo art. 14 da Lei 14.010/2020 a condutas colusivas.
Desde logo entendo que deve ser afastada a aplicação da exceção aos cartéis hard core ou clássicos, que tem na institucionalização e na perenidade características fundamentais, que não se coadunam com a ocasionalidade e excepcionalidade da pandemia8.
Ademais, mesmos cartéis ocasionais ou difusos que estabelecessem a uniformização das principais variáveis concorrenciais, ou seja, preço, quantidade ou divisão territorial, não deveriam ser beneficiados pela ressalva do § 1º do art. 14 da Lei 14.010/2020.
Muito pelo contrário, aproveitar o momento para uniformizar tais variáveis assemelha-se muito mais ao oportunismo que as autoridades de defesa da concorrência de modo uníssono deixaram claro que não seria tolerado nos seus comunicados sobre a aplicação das normas de defesa da concorrência durante a pandemia de Covid-19.
É pouco provável que um cartel que incidisse sobre as variáveis mais sensíveis de mercado, com inequívoco sacrifício ao bem-estar do consumidor, cuja preservação constitui o âmago da defesa da concorrência, pudesse ser considerado como uma reação válida às circunstâncias excepcionais da pandemia de Covid-19.
Parece-me que a ressalva do § 1º do art. 14 da Lei 14.010/2020 não é endereçada a cartéis, mas sim a atos de colaboração entre agentes econômicos utilizados para enfrentar problemas específicos relacionados à pandemia.
Tal interpretação alinha-se ao entendimento de autoridades de defesa da concorrência de diversos países, que ao emitirem comunicados incentivando atos de colaboração empresarial destinados a mitigar os efeitos da crise deixaram claro que medidas oportunistas que restrinjam a concorrência serão objeto de repressão.
Destaco, por exemplo, a Comunicação da Comissão Europeia que acentua a importância da colaboração, traça contornos das condições necessárias para a sua licitude e enumera exemplos de acordos válidos entre empresas, sobretudo na área farmacêutica. O documento esclarece que não serão tolerados comportamentos oportunistas e, assim, ressalta a possibilidade das empresas que estiverem em dúvida acerca da licitude da conduta colaborativa efetivem consultas e solicitações de cartas de conforto9.
A Comunicação da Comissão Europeia contém interessantes exemplos de atos de colaboração lícitos, tais como o compartilhamento de informações agregadas sobre capacidade de produção e gargalos de abastecimento de insumos, a fim de minorar a escassez de produtos e serviços médicos e sanitários. O documento indica, inclusive, a possibilidade de as empresas designarem uma entidade que coordene o transporte de insumos escassos necessários para a fabricação de medicamentos.
Destaco também a comunicação conjunta do Departamento de Justiça e da Federal Trade Commission Federal nos Estados Unidos da América, que listou uma série de atividades de colaboração destinadas ao aperfeiçoamento da saúde e segurança em resposta à pandemia que seria compatíveis com a legislação antitruste do país 10.
No Brasil, o Cade editou uma nota que apresenta elementos interpretativos da licitude de medidas de colaboração entre as empresas para enfrentamento da pandemia, especificando, também, os procedimentos a serem tomados por empresas para elucidar se os seus atos de colaboração podem ou não ser capitulados como infração da ordem econômica11.
No que tange ao escopo, o ato de colaboração deve ser limitado a medidas estritamente necessárias a resolver um problema específico decorrente da crise de Covid-19, cuja resolução não seria possível de ser alcançada sem a colaboração. A duração e o alcance do território geográfico devem ser restritas ao imprescindível para a resolução do problema. A nota recomenda, ainda, a implementação de mecanismos de governança e compliance que assegurem a estrita boa-fé dos agentes na implementação e execução dos atos de colaboração.
O Cade disponibilizou três meios para que os agentes obtenham da autarquia um juízo prévio acerca da licitude dos atos de colaboração que pretendem empreender: 1- Canal de Comunicação com a Superintendência-Geral do Cade; 2- Petição para obtenção de pronunciamento escrito e não vinculante da Superintendência Geral e do Tribunal do Cade sobre a existência de indícios anticompetitivos nos atos de colaboração e; 3- Consulta, que é o procedimento por meio do qual os agentes podem obter um pronunciamento vinculante ao Tribunal do Cade.
A edição de uma nota que estabelece parâmetros de licitude dos atos de colaboração, somada à disponibilização de meios para pronunciamento prévio do Cade para sanar dúvidas acerca da compatibilidade da conduta com a legislação de defesa da concorrência confere maior segurança jurídica aos agentes econômicos.
Ademais, reforça a interpretação de que as condutas colusivas que extrapolem o estritamente necessário para afastar ou mitigar efeitos deletérios derivados de circunstâncias excepcionais da pandemia de Covid-19 são passíveis de configurar infração da ordem econômica, o que inclui cartéis clássicos ou ocasionais que venham a incidir sobre variáveis concorrencialmente sensíveis, em especial a uniformização de preços, a limitação de quantidades ofertadas e a divisão territorial.
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