Direitos fundamentais, políticas públicas e PEC 04/2018
Em março de 2018, Brasília sediou o 8º Fórum Mundial da Água. Foi a primeira vez que um país do Hemisfério Sul recebeu o evento organizado pelo Conselho Mundial da Água. Consoante informações oficiais extraídas do site do Senado Federal [1],
"cinco propostas sobre uso sustentável da água e investimentos em preservação foram apresentadas por parlamentares após o evento, além de três terem sido aprovadas pelo Plenário durante a realização do fórum".
Antes do evento, no plano legislativo interno já estava em tramitação no Senado Federal a PEC 04/2018, cujo propósito é incluir o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais. Recentemente, no último dia 7, o Plenário daquela casa iniciadora enfim finalizou a aprovação do projeto e o encaminhou à Câmara dos Deputados. Uma vez aprovada nas duas casas legislativas, o artigo 5º da Constituição Federal passará a contar com o seguinte inciso:
"LXXIX — o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento econômico".
Entre as justificativas legislativas apresentadas pelo preponente, senador Jorge Viana, o fato de o acesso à água potável não ser reconhecido intrinsecamente como um direito fundamental tende a acarretar problemas estruturais que impactam em políticas públicas de saneamento básico. Citam-se alguns dos problemas apontados: 1) em muitas políticas públicas, água potável é tratada como bem econômico, o que exclui parcelas vulneráveis da sociedade à possibilidade de seu acesso; 2) o controle de seu acesso define relações de poder e de dominação do território brasileiro, sobretudo na região do Semiárido, contribuindo, sobremaneira, para a não universalização do serviço.
No plano internacional, em 28/7/2010, por meio da Resolução nº 64/292, a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu como direito humano o acesso à água potável e ao saneamento. Até então, o compêndio normativo brasileiro para as Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico estava circunscrito à Lei nº 11.445/2007, regulamentada pelo Decreto Federal nº 7.217/2010.
Em 2020, ano em que no Brasil e no mundo tem início uma das maiores crises sanitária e hospitalar de todos os tempos, entra em vigência o Novo Marco Legal do Saneamento Básico — a Lei nº 14.026/20 (NMLSB). Desde então, o saneamento básico é composto pelos seguintes serviços públicos [2]: 1) abastecimento de água potável; 2) esgotamento sanitário; 3) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e 4) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.
A norma até então vigente — Lei nº 11.445/2007 — era omissa quanto à presença de uma entidade reguladora a nível nacional, ficando tal função a cargo de autarquias estaduais e municipais. A ausência dessa autarquia nacional, durante anos, foi apontada como uma das razões pelo déficit em políticas públicas em prol do compartilhamento adequado do abastecimento de água potável e do acesso igualitário aos serviços de esgotamento sanitário vista em sua totalidade. A indefinição regulatória do setor era, inclusive, apontada por muitos estudiosos como uns dos grandes responsáveis — consoante dados divulgados pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) em publicação lançada no Fórum da Água: gestão estratégica no setor empresarial — pelo fato de o país ocupar o 112º lugar no ranking das infraestruturas de saneamento entre os 200 países pesquisados e contar com mais de 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável, distribuídos de forma não equânime entre as cem maiores cidades do país [3], [4].
Com o advento do NMLSB, o legislador pretendeu sanar a disfunção, delegando à agora Agência Nacional de Água e Saneamento Básico o papel de autoridade regulatória nacional com responsabilidade pela instituição de normas de referência nacional para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.
É fato que inúmeros são os desafios, em matéria de políticas públicas, circunscritos ao tema "saneamento básico." Contudo não é esse o desafio a que se propõe este trabalho. O que de fato se pretende responder é: se o acesso à água potável pode ser alçado ao rol do artigo 5º da CF/88, porque o serviço de esgoto sanitário não o seria? Na prática, qual seria a importância dessa medida?
Como dito acima, entre os serviços abarcados pela NMLSB, exsurge certo que o acesso a água potável e esgotamento sanitário, somente quando prestados em conjunto, ainda que não simultaneamente, garantem a promoção de uma vida humana digna.
No que toca à acepção "acesso a água potável", a PEC 04/2018 mostra-se consentânea com o espírito do Estado de Direito constitucional, sobretudo por conferir maior respaldo e compromisso com as políticas públicas com as quais o Brasil se comprometeu no plano internacional enquanto signatário da Agenda 2030 da ONU [5].
Sobre a Agenda 2030 cabe, inclusive um adendo. Os serviços em questão correlacionam com três dos 17 objetivos propostos, a saber: o objetivo um, que firma compromisso com o combate a pobreza; o objetivo três, que visa a assegurar uma vida saudável e a promoção ao bem-estar para todos; e, por fim, o objetivo seis, que assegura a disponibilidade e a gestão sustentável de água e saneamento para todos.
Contudo, como bem revela a Lei nº 14.026/20 (NMLSB), um serviço público de saneamento básico que pretenda amparar-se em eficientes políticas públicas aptas a atender aos fins em que estruturados — garantir acesso universal em prol da preservação da saúde — deve englobar o serviço de esgotamento sanitário [6].
Sendo certo ser o objetivo da PEC 04/2018 garantir o direito à vida e à saúde, somado ao fato de que os serviços públicos de acesso à água potável são prestados em conjunto/sucessivamente com os de tratamento de esgoto (tanto é verdade que as tarifas de água e esgoto são cobradas na tarifa de água) e sendo evidente que são inúmeros os riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela ausência de redes de esgotos, seria um bom encaminhamento legislativo que o serviço de esgotamento sanitário também fosse alçado, assim como o fez a Resolução nº 64/292, da ONU, ao rol dos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º da CF.
Mas, na prática, qual a importância de uma medida como essa se, como já dito, o Novo Marco Legal para o Saneamento Básico já engloba esses serviços?
Por certo, a resposta a essa indagação não encontra uma única interpretação possível. Contudo, entre várias, adota-se uma delas: no atual Estado de Direito constitucional o exercício do poder político está submetido a regras jurídicas (Canotilho, 2003). Não obstante a rigidez que permeia a Constituição de 88, mediante procedimento substancialmente complexo é possível a alteração do texto constitucional, desde que, respeitado seu núcleo-duro, qual seja, as cláusulas pétreas.
Consoante os termos dos artigo 60, §4º, IV da CF/88, os direitos e garantias fundamentais não podem ser suprimidos da ordem jurídica. Na prática, além de tratar-se de uma importante ferramenta em prol da limitação do exercício do poder político reformador, exara, sob a ótica procedimentalista, um comando ativo ao poder político. Passa a ser dever do Estado, por meio de poderes constituídos, empreender esforços no intuito de promover efetivas ações, traduzidas em políticas públicas, capazes de garantir ao indivíduo o exercício de um direito fundamental expressamente previsto na norma fundamental. Do contrário, sem uma ação estatal específica e eficiente nesse sentido, o próprio funcionamento do processo de deliberação democrática seria posto à prova.
Como bem pontuou Barcellos (2006),
"da mesma forma como é consistente afirmar que a ação do poder político está submetida à Constituição, não há qualquer óbice teórico à conclusão (...) de que uma norma jurídica — a Constituição — interfere em caráter imperativo na definição dos gastos públicos". E, tomando essa como uma premissa lógica, estando o serviço de esgotamento sanitário alçado à categoria de direito fundamental de plano, são esperadas três grandes conquistas: 1) garantir que o seguimento receberá parte dos recursos públicos destinados à promoção da saúde; 2) empenho estatal para que o melhor serviço público prestado sob regime de delegação seja levado ao usuário final (várias etapas desses serviços são prestados pelo regime de concessão, estando a delegação e regulação a cargo do poder concedente); e 3) diante da impossibilidade de sua exclusão do texto constitucional, há uma maior expectativa de que serviço público terá um aperfeiçoamento contínuo, com vistas a alcançar a propalada universalidade.
Com todas essas ponderações, conclui-se que, assim como reconhecido pela ONU, o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário é um direito humano, portanto, um direito fundamental. A despeito da existência de um compêndio normativo ordinário apto a bem regulamentar o setor, disciplinando os serviços a serem prestados, as funções dos atores envolvidos — sejam eles do setor público, sejam do privado —, os objetivos e as metas a serem alcançadas em prol da universalização do acesso, bem como os inúmeros programas do governo ínsito ao Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) 2020-2023, com vistas a promover a melhoria dos serviços, não há um pacto geracional para que esse direito seja sistematicamente implementado.
Uma alteração no texto constitucional, tal como proposta na PEC 04/2018, para incluir, ao lado do acesso à água potável, o serviço de esgotamento sanitário como direito e garantia fundamental, poderia cumprir esse papel: firmar com as gerações futuras um pacto de expansão dos serviços públicos que atenda aos mais basilares dos direitos humanos. E, mais ainda, firmar um compromisso de busca pelas melhores práticas de implementação de políticas públicas, firmadas sob as balizas do Estado democrático de Direito em que vivemos.
Fonte: Conjur