Do expurgo ao impeachment de ministros do STF: novas feições do autoritarismo
Rememorar a prática do expurgo de ministros do Supremo Tribunal Federal prevista na Constituição de 1937, popularmente conhecida como "polaca" — por suas raízes autoritárias inspiradas na Carta Magna polonesa de 1935 —, pode parecer, em uma análise precipitada, aproximação impertinente na compreensão do atual contexto de esvaziamento democrático brasileiro. No entanto, conforme veremos, a prática constitucionalmente legitimada durante o Estado Novo nos permite refletir acerca do papel ocupado pelo Poder Judiciário em tempos de crise institucional, em que a independência dos poderes representa ameaça à consolidação de ideologias totalitárias.
O expurgo de membros do Judiciário, entre os quais magistrados do STF, encontrava respaldo, ao tempo da "polaca", em seu artigo 177. Este conferia ao chefe do Executivo, durante os primeiros 60 dias da outorga da Constituição, a faculdade de aposentar compulsoriamente, por interesse público ou conveniência do regime, funcionários públicos. Em outros termos, Getúlio Vargas, então presidente da República, a fim de eliminar dissidências políticas internas, poderia afastar discricionariamente aqueles servidores que não compartilhassem da sua filosofia centralizadora, para, então, nomear novos funcionários submissos à sua posição.
Nas palavras de Oliveira Vianna (1991), autor de viés conhecidamente autoritário:
"A obediência do funcionalismo ao chefe do Executivo torna-se, assim, essencial ao regime e ao seu pleno funcionamento: só assim o presidente da República poderá conduzir ou liderar a Nação, realizando, de acordo com os poderes que lhe são concedidos (...) as suas diversas 'políticas', num sentido 'unitário'" (Vianna, 1991, p. 157).
Referida submissão, ainda segundo o autor, é estendida para todos os magistrados, sobretudo, aos ministros do STF, sob pena de ser comprometida a finalidade do artigo 177, que buscou garantir a hegemonia do chefe do executivo. Uma atuação judicial no sentido de confrontamento das práticas governamentais criaria embaraços indesejados à ação do presidente, o qual, deve-se lembrar, concentrava a atividade administrativa e, também, a legislativa. Garantir a submissão do judiciário era, então, essencial a preservação do regime autoritário (Vianna, 1991, p.159).
Alguns vários anos depois (84, especificamente), e já sob a vigência da Constituição de 1988, de viés inquestionavelmente democrático, o papel contra hegemônico exercido pelo Poder Judiciário, em especial pelo STF, continua a ensejar tentativas de silenciamento e controle institucional, sobretudo por governantes nacionalistas. Infelizmente, os exemplos são diversos.
O mais expressivo e recente, no entanto, envolve pedido de impeachment formulado pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, em detrimento do ministro do STF, Alexandre de Moraes. As alegações formuladas atacam decisões judiciais proferidas pelo ministro em processos que afetam o chefe do Executivo, entre elas o recebimento de notícia-crime para apurar o suposto vazamento de informações sigilosas que investigam um ataque de
hackers ao sistema de informática do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018.
Em que pese a rejeição do pedido pelo presidente do Senado, por entender pela ausência de justa causa — ou seja, pela falta de subsunção dos fatos alegados às normas legais relativas ao impeachment —, algumas considerações devem ser feitas.
De fato, é possível a abertura de impeachment contra ministro do Supremo Tribunal Federal pela prática de crime de responsabilidade, o qual será processo e julgado pelo senado, conforme dicção constitucional. As hipóteses são taxativamente previstas no artigo 39 da Lei 1.079, são elas: a alteração de decisão ou voto proferido, salvo pela via recursal; o exercício da função jurisdicional quando, por lei, seja suspeito; o exercício de atividade político-partidária; comportamento desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; e, por fim, o procedimento de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções.
Certamente, não estão e nem deveriam estar neste rol, descontentamentos quanto ao conteúdo de decisões judiciais. Do contrário, a separação dos poderes estabelecida dentre os princípios fundamentais da República e cláusula pétrea do ordenamento jurídico brasileiro, restaria esvaziada de sentido.
Em um Estado pautado pela democracia, como o brasileiro, a existência de tensionamentos entre os poderes é constitutiva da interação comunicativa que advém da tentativa de persuasão do outro (SIEGEL; POST, 2009, p. 27). A mobilização e contramobilização dentro e fora das instituições formais não ameaça, tampouco mitiga, o constitucionalismo e a própria democracia. Na verdade, fortalece a deliberação ao demandar o aperfeiçoamento contínuo dos argumentos e das virtudes cívicas, que permitem que todos participem e argumentem a partir do respeito ao desacordo. Jamais da aniquilação.
A premissa, entretanto, é a democracia. Quando esta não convém ou se pretende mitigá-la, a oposição e o dissenso, como visto em Vianna (1991), enfraquecem o governante totalitário e, por isso, deve ser "expurgada". Seja através da aposentadoria compulsória de ministros — como em 1937 —, seja em tentativas antidemocráticas de criminalizar e afastar magistrados por decisões judiciais que contrariem o projeto político do chefe do Executivo, o objetivo não é outro senão o de controlar para silenciar.
A diferença temporal, no entanto, é crucial: o expurgo é fruto de uma constituição autoritária. O recente pedido de impeachment de ministro do STF ocorre após mais de 32 anos da Constituição Cidadã. Esta segue resistindo a sucessivas tentativas de arroubos institucionais. Após a decisão do presidente do Senado, respira aliviada por mais um dia.
Fonte: Conjur