Juiz autista buscou magistratura após irmã ser vítima de feminicídio
Oriundo de família humilde da periferia de Volta Redonda/RJ, muitas vezes com apenas arroz e feijão em casa, estudante de escola pública e com dificuldade de relacionamento.
Assim foi a infância de Ricardo Fulgoni. O menino, que tinha dificuldade com o "mundo exterior", teve a ajuda de sua irmã mais nova e, foi graças a ela que foi apresentado à sociedade, ensinado a dar bom dia e a amarrar o tênis, já com 16 anos.
O jovem, que só iria descobrir após os 30 anos que é autista, passou para concurso do INSS seis dias após completar 18 anos.
A felicidade daquela conquista foi breve, pois "a vida lhe deu uma chacoalhada" - como ele mesmo diz. A irmã de Ricardo, aquele forte alicerce, foi vítima de feminicídio por seu namorado.
A tragédia se tornou força. Ricardo Fulgoni é juiz do TJ/PR aos 35 anos. A maior motivação? Mostrar ao mundo que que o sucesso profissional é possível apesar do autismo, e conseguir dar às pessoas o atendimento humano que não teve na ocasião da morte de sua irmã.
Autismo
Com diagnóstico tardio, o Ricardo conta que sempre foi uma criança "diferente", "estranha" e "chatinha". Quando começou a estudar para concurso e chegou a pandemia, Ricardo se viu em crises que achava que eram de depressão.
Em uma consulta, levantou-se a hipótese de autismo. "Para mim foi um choque. Minha visão de autista era uma pessoa que não tinha condições de trabalho. Eu associava autismo com incapacidade."
Quando o diagnóstico foi confirmado, o magistrado conta que pensava que não poderia mais ser juiz. Mas os médicos afirmaram que seria possível. O resultado foi a aprovação em dois concursos.
Quando perdeu a irmã, Ricardo conta que o feminicida ligou para sua casa por vários dias. Para conseguir identificar a ligação, oficiou a companhia telefônica, mas não obteve sucesso. Precisou, então, passar 10 dias falando com o assassino para ganhar sua confiança e ele não parar de ligar até que a companhia instalasse o identificador de chamadas, após longo processo burocrático.
Ao conseguir a identificação, foi atrás do acusado, e conseguiu que ele fosse preso. Os policiais, que estavam sem viatura, foram no carro de Ricardo prender o acusado. Era um Fiat Uno antigo, que comprou em razão do seu emprego no INSS.
"Filho de pobre, o sistema de Justiça não dá a devida atenção", disse o juiz, ressaltando que quer ajudar as pessoas a ter o atendimento judiciário
Para Ricardo, quando um autista chega no mercado de trabalho, precisa ser voz daqueles que não têm. Por isso, sempre faz questão de contar a todos de seu diagnóstico.
"Uma das coisas que faço questão de marcar minha presença é nas filas preferenciais. A nossa deficiência é invisível. Vai ter o questionamento, pois não pareço uma pessoa que tem direito a usar. Faço questão justamente para abrir a mente das pessoas."
E o magistrado já teve questionamentos agressivos ao usar seus direitos.
O juiz conta, ainda, que poderia ter ido para a magistratura antes, se não tivessem falado tanto para ele que era difícil.
"Falta muito alguém que fale: 'acredite'. É um pouco do papel que eu faço. É possível, eu vim lá de baixo. Eu vim de escola pública, fiz faculdade pelo Prouni. Educação muda a vida da gente, ela abre portas, ela transforma. É preciso que a gente acredite nisso. Não abro mão de falar para as pessoas pobres, com alguma deficiência, vá atrás, busque o caminho da educação que você pode transformar sua realidade."
O magistrado, por fim, deixou o importante recado: "Não deixem de sonhar. O sonho pode até não te levar para o local que você sonhou, mas ele te levará para um local melhor do que aquele que você estava quando sonhou
Fonte: Migalhas