Julgamento em Londres do desastre de Mariana provoca questionamentos

Os desastres ambientais ocorridos em Mariana, Minas Gerais, e Maceió, Alagoas, transcendem as fronteiras do Brasil e vão parar na arena internacional. 

De fato, o escritório Pogust Goodhead, com sede em Londres, tem trabalhado de maneira articulada ao buscar representar milhares de vítimas em ações judiciais no Reino Unido e na Holanda, para que haja reparação pelos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e o afundamento de bairros em Maceió.

Em entrevista ao Migalhas, Ana Carolina Salomão, sócia do Pogust Goodhead, detalhou os principais aspectos das ações internacionais em curso, os desafios de lidar com grandes litígios envolvendo múltiplas jurisdições, e as implicações dessas decisões para a responsabilidade corporativa em desastres ambientais.

A advogada também forneceu informações sobre os próximos passos no julgamento do caso Mariana no Reino Unido e sobre a recente decisão envolvendo a Braskem na Holanda.

Caso Mariana: 620 mil atingidos e um julgamento internacional

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, controlada pela Samarco (joint venture entre Vale e BHP Billiton), liberou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, causando o maior desastre ambiental da história do Brasil. A tragédia não só destruiu comunidades inteiras e afetou o Rio Doce, mas também causou a morte de 19 pessoas, além de afetar diretamente a vida de milhares de famílias e comunidades tradicionais.

Apesar de ser um caso brasileiro, o processo curiosamente está em andamento no Reino Unido. À primeira vista, parece inusitado o foro, mas Ana Carolina Salomão explica que:

"A barragem era operada pela Samarco, uma joint venture entre a Vale e a BHP. A BHP é uma empresa anglo-australiana listada na Bolsa de Londres. Com base na legislação processual da União Europeia, vigente na época, e na jurisprudência inglesa, foi possível protocolar a ação no Reino Unido, por ser o domicílio da ré, BHP."

O escritório Pogust Goodhead diz representar 620 mil vítimas desse desastre, das quais 600 mil seriam indivíduos, 23 mil pertenceriam a comunidades indígenas e quilombolas, e 46 de municípios atingidos diretamente pela destruição. Entre as comunidades tradicionais representadas estariam os Krenaks, Tupiniquim, Pataxó e Guarani, cujas culturas e modos de vida foram profundamente afetados pela contaminação do Rio Doce. Além disso, cerca de 1.500 negócios e autarquias também buscam reparação.

"É um processo muito diverso, pois estamos falando de mais de 600 mil histórias diferentes, cada uma com suas peculiaridades e danos específicos", afirma a advogada.

Protocolo da ação e expansão do número de atingidos

Segundo nos relata a advogada, a origem do processo no Reino Unido se deu em 2017, quando o fundador do Pogust Goodhead, Tom Goodhead, foi procurado por um advogado brasileiro que representava centenas de vítimas. A ideia de levar o caso ao exterior surgiu, segundo Ana Carolina, pela frustração com a lentidão das ações no Brasil e a ineficácia da Fundação Renova, criada para indenizar as vítimas.

Mas como não existe almoço grátis, a boa intenção em ajudar as vítimas tem por trás um fundo de investimentos norte-americano, o Gramercy, que segundo os informes aportou US$ 552,5 milhões na banca, custeando (com objetivo de colher lucros) o alto valor dessas demandas. 

Independentemente de quem financia esses custos (tema que pode merecer outra reportagem), o fato é que o processo foi protocolado em 2018 com 200 mil atingidos, número que aumentou consideravelmente nos anos seguintes. "Foi um processo de descoberta, tanto para o escritório quanto para os atingidos, sobre a possibilidade de justiça fora do Brasil", destaca.

Entre os principais pedidos da ação estão indenizações por danos materiais, psicológicos e culturais. A advogada ressalta a gravidade dos danos:

"As consequências ainda são visíveis a olho nu, nove anos depois. Estamos falando de comunidades devastadas, como Bento Rodrigues, que nunca mais foram as mesmas, e de povos indígenas cuja relação com o Rio Doce, um elemento central de suas culturas, foi completamente rompida."

Ela cita o caso dos Krenak como um dos exemplos mais tocantes:

"Para a comunidade Krenak, o Rio Doce é considerado um deus, e todos os rituais importantes acontecem nele - batismos, casamentos e ritos de passagem após a morte. Hoje, eles veem o rio como morto, o que afeta profundamente sua identidade cultural e espiritual."

Expectativas para o julgamento no Reino Unido

O julgamento no Reino Unido está previsto para começar em 21 de outubro deste ano e se estender até fevereiro ou março de 2025. A Suprema Corte Inglesa já decidiu que o Reino Unido é uma jurisdição válida para ouvir o caso, e o próximo passo será julgar a responsabilidade da BHP pelo rompimento da barragem. "Nossa expectativa é muito alta, pois entendemos que o maior desafio, que era a questão da jurisdição, já foi superado. A responsabilidade da empresa é juridicamente mais clara", explicou a advogada.

Ela também ressaltou a importância de finalmente ver os executivos da BHP sendo questionados sobre suas decisões:

"Independentemente do resultado final, essa será a primeira vez que os executivos da BHP serão confrontados sobre suas ações, e os nossos clientes, que são testemunhas no processo, terão a chance de serem ouvidos."

As empresas não parecem muito otimistas quanto ao desfecho do caso na Inglaterra, pois, em um anúncio recente, teriam firmado um acordo relacionado às ações judiciais. Na prática, as mineradoras concordaram que, em caso de condenação, dividirão igualmente os valores a serem pagos.

Relação com as decisões no Brasil

Uma das perguntas centrais é se as decisões tomadas pelos tribunais brasileiros impactam o julgamento no Reino Unido. Defendendo seu lado, Ana Carolina é categórica em negar tal possibilidade. 

Conquanto a advogada não vacile na resposta, o fato é que eventual nova repactuação feita no Brasil pela Vale e BHP, dependendo da forma e do caráter, podem ser um fato novo a justificar nova abordagem. 

O direito das vítimas e a soberania brasileira

Um dos pontos polêmicos levantados pelas empresas é o argumento de que o julgamento no Reino Unido violaria a soberania brasileira. A defesa dessa ideia tem sido promovida por algumas respeitadas instituições e célebres juristas no Brasil, que alegam que as ações em tribunais internacionais estariam usurpando o direito do Brasil de julgar os casos dentro de suas próprias fronteiras. 

No entanto, Ana Carolina Salomão rebate veementemente essa interpretação dizendo que a "existência de uma ação internacional não obstrui ou interfere nos processos que correm no Brasil. É apenas mais uma via disponível para as vítimas buscarem justiça."

Para ela, a legislação processual utilizada no Reino Unido permite que o caso seja julgado lá devido ao domicílio da BHP, enquanto a base material da ação é inteiramente sustentada pela legislação ambiental brasileira. "Estamos aplicando a legislação ambiental e civil do Brasil, que é uma das mais modernas e protetivas do mundo. Não há ataque à soberania nacional. Pelo contrário, o que estamos fazendo é garantir que os direitos das vítimas sejam respeitados, independentemente de onde a empresa tenha sua sede", defende.

BHP financia ação no Brasil contra litígios internacionais

Ana Carolina também expõe uma suposta estratégia adotada pela BHP para minar os litígios internacionais: o financiamento de ações no Brasil para impedir que municípios busquem reparação no exterior. A BHP teria financiado o IBRAM - Instituto Brasileiro de Mineração, para que a entidade movesse uma ação no STF, alegando que a participação de municípios brasileiros em processos no exterior seria inconstitucional. "O argumento utilizado é a soberania nacional, mas isso é uma guerra de narrativas. É uma tentativa de silenciar as vítimas e desviar o foco da responsabilidade da empresa", explica Salomão.

Braskem: desdobramentos na Holanda

Outro grande litígio internacional em que o Pogust Goodhead atua envolve a Braskem e o afundamento de bairros em Maceió, Alagoas, causado pela extração de sal-gema. O processo na Holanda já passou pela fase de responsabilização, e uma decisão de julho de 2024 confirmou a responsabilidade da Braskem S.A. pelo desastre.

O caso envolve, até o momento, nove indivíduos, mas o grupo pode crescer nos próximos meses. "Estamos trabalhando para incluir mais vítimas, pois o impacto desse desastre foi profundo e atingiu milhares de pessoas", explicou a advogada.

Desafios

Além dos casos de Mariana e Braskem, o escritório Pogust Goodhead também atua em outros grandes litígios ambientais, como o caso de Brumadinho e ações contra empresas no Pará, relacionadas à poluição de rios. Ana Carolina acredita que o sucesso dessas ações internacionais pode abrir precedentes importantes para novos casos envolvendo empresas brasileiras em tribunais internacionais.

Para ela, a impunidade é um problema não só jurídico, mas também social e econômico, e o cumprimento da legislação é fundamental para garantir um futuro mais sustentável para o Brasil. 

Fonte: www.migalhas.com.br


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