Juristas pedem que Supremo compatibilize a LSN com a Constituição

A Lei de Segurança Nacional, redigida na ditadura, mas ainda em vigor, tem pontos que afrontam diretamente o direito fundamental à liberdade de expressão, particularmente em seus artigos 22 e 26.

Por isso, é necessário que o Supremo Tribunal Federal compatibilize a interpretação desses artigos com a Constituição, principalmente enquanto o Congresso não produzir uma lei própria para a defesa do Estado democrático de Direito.

Esse é o teor de um memorial assinado por sete juristas e enviado na sexta-feira (19/3) ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo, relator de uma arguição por descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que questiona a LSN.

Em um Estado democrático de Direito, o que deve ser protegido pela lei são as instituições, e não os ocupantes dos cargos; o Estado, e não o governo atual. Assim, não se pode considerar qualquer ofensa à "honra" dos ocupantes do poder como ameaça ao Estado em si. Por isso, é necessário garantir que a liberdade de expressão não seja restrita quando não houver real ameaça às instituições.

O documento é assinado por Adriano Teixeira, Alaor Leite, Alexandre Wunderlich, Maurício de Oliveira Campos Júnior, Miguel Reale Júnior, Oscar Vilhena Vieira e Theodomiro Dias Neto.

Artigo 22

O primeiro dos dispositivos questionados proíbe: "Fazer, em público, propaganda: I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; III - de guerra; IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: detenção, de 1 a 4 anos".

Para os juristas, o inciso I desse artigo não deve incidir sobre o exercício da liberdade de expressão quando não houver capacidade, por parte do ofensor, de "abalar o real funcionamento das instituições, entendido esse funcionamento como a realização integral das atribuições e competências assinaladas pela Constituição".

"À ação típica de 'fazer, em público, propaganda' deve ser adicionada, assim, a exigência de um resultado de perigo", afirmam, com base no argumento de que a lei deve proteger o funcionamento das instituições, e não a honra dos ocupantes de cargos públicos.

Assim, a proposta é que fiquem excluídas, já de saída, da incidência do inciso I, todas as manifestações isoladas. No caso de ataques virtuais, a proposta é que se analise sua abrangência e capilaridade, seu potencial de efetuar o abalo pretendido.

O memorial sustenta que a exigência de aptidão real para o abalo das instituições foi, de alguma forma, "intuída pelo legislador de 1983", mesmo que não se pudesse levar em conta na época os ataques virtuais, especialmente porque, nos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo, há agravantes de pena para casos de disseminação de maior alcance.

Artigo 26

Se o problema do artigo 22 é resolvido dando-se a ele interpretação conforme à Constituição, no caso do artigo 26 é necessário considerá-lo não recepcionado pela Lei Maior.

O dispositivo prevê pena de reclusão de um a quatro anos para quem "caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação".

Para os juristas, o artigo "simplesmente inverte a relação de primazia do institucional sobre o pessoal em um duplo sentido: ao confundir, em primeiro lugar, o ocupante da Presidência de um dos Poderes com a Presidência, e, em segundo lugar, ao confundir a Presidência com a instituição em si".

De forma contrária à do artigo 22, a não recepção do artigo 26 não vai criar uma lacuna de punibilidade, afirmam os autores, uma vez que a honra individual "estabelecerá, sempre, o limite da necessária proteção jurídico-penal de funções públicas".

"O direito à liberdade de expressão apresenta-se, a rigor, com ainda mais robustez no contexto de críticas, mesmo ofensivas, contra agentes detentores do poder político, sobretudo se realizadas na arena pública, na discussão objetiva de assuntos de interesse comum. É assim que o STF aborda, há algum tempo, essa questão, em consonância com cortes estrangeiras", defendem.

Explosão de ataques

A preocupação com o uso indiscriminado da LSN no governo Bolsonaro está na ordem do dia. Segundo um levantamento do Estadão, o número de inquéritos abertos pela Polícia Federal com base na Lei de Segurança Nacional (LSN) saltou 285% em comparação com a gestão de Dilma Rousseff/Michel Temer.

Diversos pedidos foram feitos no STF contra o uso da Lei de Segurança Nacional. Na sexta-feira, a Defensoria Pública da União solicitou que todos os inquéritos e ações abertos com base na norma editada durante a ditadura militar fossem trancados.

O documento cita como exemplo de uso indevido da LSN o inquérito aberto contra o advogado Marcelo Feller. A investigação foi iniciada a pedido do ministro da Justiça, André Mendonça, depois de Feller criticar o modo com que Bolsonaro estava conduzindo o combate ao novo coronavírus.

Na quinta-feira (18/3), um grupo de advogados também entrou com HC coletivo no Supremo Tribunal Federal pedindo a proibição de prisões, investigações ou a propositura de ações contra críticos de Bolsonaro. O HC também pede a extinção de inquéritos e ações já abertas.

Além disso, três deputados federais do PT enviaram uma representação à Procuradoria-Geral da República pedindo que seja apurado eventual abuso de autoridade cometido pelo ministro da Justiça ao abrir os inquéritos com base na LSN para investigar críticas feitas ao presidente.

Em live do Grupo Prerrogativas no sábado (20/3), o ministro Ricardo Lewandowski se mostrou alarmado com a enxurrada de inquéritos abertos com base nessa lei. Para ele, a LSN, herança da ditadura militar, é um assunto que terá de ser enfrentado pelo Supremo, e sem muita demora.

"Tenho a convicção de que o Supremo Tribunal Federal tem um encontro marcado com essa lei", disse o ministro. "O Supremo tem de dizer se esse fóssil normativo é compatível com a letra e com o espírito da Constituição. É um espectro que está vagando no mundo jurídico e nós precisamos exorcizá-lo, ou colocá-lo em seu devido lugar".

Excrescência ditatorial

Os mesmos autores do memorial entregue a Gilmar Mendes já tinham assinado também pareceres a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, com recomendações para o abandono do modelo vigente da Lei.

Em coluna publicada pela ConJur, o advogado e parecerista Lenio Streck e o defensor público Eduardo Newton explicaram o contexto histórico que levou à manutenção da LSN e defenderam que a norma deve ser objeto de estudo para historiadores.

Nos anos 2000, já havia surgido uma proposta de substituição da LSN. O ministro da Justiça à época, José Gregori, tão logo assumiu o cargo, reuniu um grupo de especialistas para elaborar a chamada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Seria a institucionalização do chamado "paradoxo de Popper", segundo o qual tolerância democrática não deve tolerar os intolerantes.

"A ideia era mostrar que a democracia se defende também com leis democráticas. Mostrar que as pessoas podem se defender legalmente, mas de acordo com lei feita no ritual democrático, e não autoritário", contou Gregori em entrevista à ConJur.

O responsável por submeter a proposta à presidência, em abril de 2002, foi o então ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., que também assina o memorial, mas ela não teve prosseguimento.

Atualmente, a possibilidade de alternativa ao modelo da LSN é o PL 3.864/2020, chamado de Projeto de Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito, que visa a revogar a Lei de Segurança Nacional e garantir a integridade e funcionamento dos poderes. Lenio Streck é um de seus redatores.

Fonte: ConJur.


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