O consumidor pós-pandêmico e a assimetria da sociedade de consumo
Para além da crise sanitária provocada pela pandemia, culminando com milhões de mortes em todo o mundo, a mesma trouxe consigo a crise econômica, alterando as relações interpessoais, trabalhistas e de consumo, expondo, ainda mais, as agruras das vulnerabilidades do consumidor, potencializando algumas delas, de modo que, rapidamente, tiveram que lidar com o analfabetismo digital, preços abusivos de produtos de primeira necessidade, publicidade enganosa, cancelamento de viagens e estadias em hotéis, bem como a intensificação da oferta de crédito.
Inegável que o consumidor vivenciou, em um período de inúmeras incertezas, diversas modificações nas relações consumeristas, impactando, diretamente, nas suas escolhas, realocando preferências e prioridades, se adaptando a uma nova realidade que exteriorizou uma ruptura paradigmática na vida cotidiana e consumerista até então experimentada. De igual modo, as empresas também tiveram que se adaptar à nova realidade vivenciada, implicando em alterações estruturais, se atentando nos cuidados com a saúde e segurança do consumidor, fornecimento de produtos e serviços no formato delivery, migrando a totalidade ou quase totalidade de suas atividades para o e-commerce, ante a necessidade de não encerramento de seus negócios[1].
Estudo realizado pelo Sebrae[2] mostra que as prioridades do consumidor se alteraram drasticamente com a chegada da sociedade pandêmica, crescendo o interesse por produtos para a manutenção geral da saúde e bem-estar, priorização de produtos essenciais para a contenção do vírus, saúde e segurança pública, aumento do consumo de alimentos e compras de viagens restritas, impulsionados pela angústia e necessidade de adaptação ao incerto. Ao mesmo tempo, o aumento do acesso ao e-commerce, motivado pela procura de produtos e serviços on-line, também envolveu o consumidor, demonstrando as disparidades do analfabetismo digital, bem como o próprio fornecimento e acesso aos serviços de telecomunicações, colocando em evidência diversas preocupações, dentre elas, a proteção de dados do consumidor e a privacidade, acesso à solução de conflitos e ressarcimento, fraudes, publicidade enganosa e a própria existência de canais de comunicação e reclamação idôneos[3]. De acordo com a Global Webex Index[4], mundialmente, um terço dos consumidores relatou ter efetuado mais compras on-line durante o período pandêmico, ou seja, o consumidor que estava habitualmente acostumado a realizar compras de forma presencial, não teve alternativa que não migrar para o comércio eletrônico. No mesmo sentido, a Organização Mundial do Comércio[5] relatou o aumento na procura de produtos eletrônicos, alimentos, suprimentos médicos e utensílios domésticos.
Assim, o que restou nítido no período pandêmico, foi a sensação de ansiedade e incerteza vivenciada pelo consumidor, fazendo com que emergisse uma necessidade de resgate de autocontrole sobre os aspectos que circundam a vida, devido a hipervulnerabilidade experimentada, trazendo à tona algumas preocupações que se refletiram na sociedade de consumo. De acordo com o site Mercado e Consumo[6], entre tantas certezas e preocupações genuínas, nasceu uma necessidade de busca de positividade e esperança quanto ao futuro melhor, traduzindo-se em um consumo ativista, a partir da autoconscientização do consumidor de influenciar o ambiente e poder fazer parte da solução, com engajamento mais forte em causas sociais e de cobrança de mais ação por parte das empresas, já que desejam ter mais do que um produto ou serviço, mas sim um motivo para consumi-lo. De igual modo, buscou, na sociedade de consumo, conforto no que é estável, previsível e seguro, como reflexo de um desejo latente de estabilidade e segurança, traduzindo-se em uma motivação cautelosa quanto ao consumismo, assumindo uma mentalidade recessiva, impactando até mesmo na taxa de abandono de “carrinhos de compra” no e-commerce.
Lipovetski [7]já alertava que em se tratando da busca do prazer, o mais importante não é o preço da coisa, mas a mudança que ela pode provocar na rotina do consumidor, sendo o consumo uma ocasião propícia para a renovação da existência da vida cotidiana, capaz de arejar e rejuvenescer a atmosfera daquilo que se experimenta habitualmente. No mesmo sentido, Baudrillard[8] leciona que as promessas de felicidade, contidas no mesmo invólucro que embala o objeto, podem amenizar, ainda que, momentaneamente, a ansiedade, que parece corroer a alma, disparando a narcose dos sentidos, tornando menos insuportáveis existências vãs disseminadas na sociedade de consumo. É assim que o discurso do canto da sereia possui por premissa a instauração, induzimento e legitimação de novas práticas e comportamentos sociais, criando desejos nunca antes sentidos, exteriorizados na prática de assédio para o consumo, que pressiona o consumidor, influenciando, paralisando ou impondo suas decisões de consumo, explorando emoções, medos, confiança em relação a terceiros, abusando o fornecedor da sua condição de expert, bem como de circunstâncias especiais do consumidor. O assédio para o consumo calca-se na necessidade de incutir necessidades e criar desejos, estimulando as compras, de modo que não possuir o objeto de desejo promove reações furtivas e, consequentemente, pensamentos e sentimentos doentios e incontroláveis[9].
Se na sociedade dita standard, o assédio de consumo envolve o consumidor com seus tentáculos nos mais diferentes espectros de consumo, na sociedade pandêmica, concentrou-se na propagação da necessidade da contratação de empréstimos pessoais – ainda que efetivamente muitos consumidores necessitassem – abusando do apelo emocional e da situação de hipervulnerabilidade vivenciada, sem olvidar da incidência mais contundente dos chamados “acidentes da vida cotidiana”, ante as infindáveis incertezas que se apresentaram, por meio do uso recorrente de imperativos verbais e de palavras que instigam o consumidor a contratar , mensagens estas dirigidas ao consumidor que olha e não enxerga, lê e não compreende, expondo-o a injustificadas situações de riscos. A consequência, pode-se constatar no aumento de 113% na procura por crédito consignado, de 2020 em relação a 2019[10], bem como o fato de que 79% dos brasileiros buscaram crédito na pandemia[11]
Nesse sentido, o consumidor pós-pandêmico, mergulhado em uma sociedade assimétrica de consumo, mantém-se refém das publicidades e do assédio para o consumo, ferindo o recente artigo 54-C, do microssistema consumerista, publicidades estas cada vez mais apelativas, agressivas e emocionais, deixando o consumidor mais distante da (falsa) sensação de estar escolhendo conforme sua vontade, sendo controlado por parte de quem detém uma forma de poder, como bem pontua Schmidt Neto[12], permanecendo, dia após dia, tarefa árdua, principalmente junto ao meio eletrônico, não ser importunado por publicidades não solicitadas que alastram o assédio para o consumo e induzem à contratação do crédito como forma de solução dos problemas apresentados. Assim, como já vivenciado no período pandêmico, espera-se que o consumidor pós-pandêmico mantenha reordenada a sua ordem de prioridades nas decisões de consumo (ou seria consumismo?), de modo a possuir uma relação cada vez mais amigável com o tempo, pois quem compra a crédito antecipa o futuro, estimulado que é para adquirir o que não se precisa com o dinheiro que não se tem.
Para isso, o consumidor pós-pandêmico traz consigo o enorme legado da necessidade de letramento financeiro, urgindo a necessidade de um Estado mais atuante, promovendo a conscientização do consumidor como forma de tentar dirimir a assimetria existente entre quem oferta o crédito e quem contrata, para além das espécies de vulnerabilidades existentes, tornando os consumidores sabedores dos riscos e das consequências advindas da contratação de crédito, envolvendo-os como sujeitos ativos do controle financeiro de suas próprias vidas, tudo isso aliado à punição daqueles fornecedores que obnubilam as práticas de crédito responsável. De outro modo, ressalta-se que não se quer de maneira alguma demonizar o crédito, por meio da sua concessão, pois necessário em uma sociedade de consumo, especialmente para as classes menos favorecidas economicamente, pois crédito e endividamento são facetas de uma mesma moeda, mas sim que haja o conhecimento de que o crédito possui uma patologia inerente e estrutural que é o superendividamento.
Dessa forma, ainda que não se possa, em um exercício de futurologia, prever o comportamento do consumidor pós-pandêmico, ante as armadilhas imprevisíveis da sociedade de consumo, é possível descrever as diretrizes a serem seguidas, perpassando, necessariamente pelo binômio educação e concessão de crédito responsável, pois conhecer o passado é fundamental para enfrentar as agruras que se avizinham.
Fonte: Conjur