O fim do voto de qualidade tem repercussões penais
Como se sabe, em abril de 2020, a Lei 13.988/2020 aboliu o chamado "voto de qualidade", assim entendida a atribuição de peso dobrado à manifestação do presidente dos órgãos fracionários do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), em caso de empate. Diferentemente dos órgãos de julgamento em que a composição é ímpar, contando o presidente, mas este em regra não vota, fazendo-o apenas no caso de empate, no Carf a composição é par, incluído o presidente, que no caso de empate, votava duas vezes, ou tinha seu voto duplamente considerado. Com o advento da Lei 13.988/2020, e a extinção do voto de qualidade, estabeleceu-se que, em caso de empate, prevalece o entendimento mais favorável ao sujeito passivo da relação tributária.
Em texto anterior desta coluna, já se examinou a extinção dessa figura, do voto de qualidade, à luz do Direito Processual Tributário e do Direito Constitucional, notadamente porque houve quem defendesse a inconstitucionalidade de sua revogação. Não se pretende voltar a esse tema aqui, percorrendo as razões pelas quais não há inconstitucionalidade, seja formal, seja material, em se extinguir o voto de qualidade e se estabelecer, em caso de empate, demonstração objetiva da dúvida quanto à viabilidade jurídica de um lançamento, de se o extinguir ainda na esfera administrativa, em que se faz o controle de sua legalidade.
A questão que se coloca, agora, são os possíveis efeitos penais dessa revogação.
Imagine, leitora, o sujeito passivo que tem contra si a imputação de ter deixado de pagar tributo devido, e de ter empregado meios fraudulentos para ocultar isso do Fisco. Caso esse cidadão não concorde com a acusação, e apresente defesa e posterior recurso administrativo, sendo este objeto de julgamento no qual se dá empate, metade dos conselheiros entendendo que não há tributo devido, e a outra metade entendendo que sim, prevalecerá, hoje, a tese segundo a qual o tributo não é devido, ensejando a extinção do crédito tributário. Nesse contexto, a teor do que estabelece a Súmula Vinculante 24/STF, e tendo em vista que a existência de tributo devido é elemento essencial do tipo, é o próprio crime que desaparece. Sequer haverá denúncia. Mas isso se o julgamento administrativo ocorrer a partir da vigência da Lei 13.988/2020.
Suponha-se, porém, que o julgamento ocorreu antes. Deu-se em 2019, por exemplo. Nessa hipótese, verificado o empate, ao voto do Presidente se atribuiu peso duplo, para dirimir o impasse. Caso o Presidente tenha votado, como se dava na maior parte dos casos, em favor da Fazenda, o lançamento terá sido confirmado. Em seguida, presente a imputação também de fraude, haverá a representação fiscal para fins penais, e o Ministério Público oferecerá a denúncia.
A questão que se coloca, então, é a de saber se, diante do princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, consagrado no art. 5.º, XL, da CF/88, e no art. 2.º, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, as disposições da Lei 13.988/2020 poderiam ser aplicadas retroativamente, em benefício do contribuinte, neste segundo exemplo.
E a resposta para essa questão, sob a nossa ótica, é afirmativa.
Poder-se-ia dizer, em oposição, que a Lei 13.988/2020 veicula norma de direito processual administrativo, e não norma penal. Daí a garantia do art. 5.º, XL, não lhe ser aplicável. Às regras de processo aplicar-se-ia a ideia do
tempus regit actum, que lhes confere aplicação imediata, mas não retroativa. Tanto que o próprio crédito tributário, se constituído previamente e mantido por voto de qualidade, não será extinto com a aplicação retroativa da nova lei.
Tais argumentos, contudo, não procedem.
Quanto à distinção entre norma penal e norma processual, ela não justifica o afastamento da disposição constante do art. 5.º, XL, da CF/88, pois, além de as divisões do Direito em ramos, enquanto sistema, serem relativas, as próprias normas penais invariavelmente fazem remissão, ou são complementadas, por disposições de outros ramos. Alteração em normas de Direito Administrativo que tratam de servidores públicos, ou de Direito Tributário que estabelecem isenções, ou de Resoluções da Anvisa que tratam de substâncias consideradas drogas ilícitas, por exemplo, têm reflexo direto na própria estrutura e compreensão de normas penais referentes a crimes praticados por servidores públicos, ou a crimes tributários, ou de tráfico de drogas. Se normas não se confundem com textos, sendo, antes, o sentido que se atribui a estes, a norma penal é inegavelmente composta de textos editados para o trato de assuntos outros também, como o caso dos que tratam de Direito Tributário.
A jurisprudência, inclusive, é farta em exemplos nos quais normas supostamente de outros ramos, mesmo processuais, são alteradas, com efeitos retroativos benéficos em matéria penal, o que se reconhece pacificamente. É o caso da mudança levada a efeito pela Lei 9.099/95, que passou a exigir representação do ofendido nos crimes de lesões corporais leves ou culposas, como condição para a instauração da ação penal. Apesar da clara natureza processual da prescrição contida na Lei 9.099/95, algo que não ocorre com a Lei 13.988/2020 (que trata de assunto situado em zona limítrofe porquanto diretamente afeta ao próprio direito material — tributo devido), prevaleceu o entendimento de que deveria ser aplicada aos processos em curso, os quais só poderiam prosseguir depois de consulta à vítima a respeito (REsp 66.689/AL). Seja pelo disposto no art. 5.º, XL da CF, seja pelo disposto no parágrafo único do art. 2.º do Código Penal, seja ainda por força do art. 112 do CTN, não há por que, em relação a créditos tributários mantidos por voto de qualidade no passado, mas que ainda amparam a repressão penal contra os sujeitos passivos correspondentes, proceder-se de maneira diversa.
Fonte: ConJur