O Poder Judiciário e a igualdade de gênero na Agenda 2030 da ONU
A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) consiste em um programa de desenvolvimento para os países signatários, a partir de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), esmiuçados em metas e respectivos indicadores.
Por sua vez, a Meta 9 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aprovada para os anos de 2020 e 2021, consiste em integrar a Agenda 2030 ao Poder Judiciário.
Dentre os objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, destaca-se o ODS 5: igualdade de gênero — alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
O próprio enunciado do objetivo já traz em si a magnitude e a relevância do assunto para que se possa falar verdadeiramente num programa de desenvolvimento sustentável em nível global; mas também devemos considerar sua indispensabilidade para o desenvolvimento nacional, regional, local, social, intrafamiliar e pessoal. Sem o reconhecimento da igualdade de todos os gêneros, permanece implícito ao sistema vigente um contexto velado de disputa, guerra, instabilidade, violências, hostilidade e desrespeito.
É bom que se deixe bem fincado que não se entende por igualdade o tratamento de mulheres e homens, independentemente do gênero, como se diferenças não existissem; mas pelo tratamento das necessidades e características de cada pessoa humana como igualmente importantes e dignas de respeito e validação, de modo que a participação das pessoas nos espaços sociais, políticos, de trabalho, familiar não venha a ser acolhido ou rechaçado em razão do seu gênero.
Ainda predomina a cultura que se constituiu a partir da ilusão da sobreposição do gênero masculino sobre o feminino, com a hipervalorização da virilidade exterior, do poder de ação e de pragmatismos distorcidos, mas deixou-se de fazer o mesmo em relação à inteligência da intuição, da percepção, da beleza, do acolhimento, da escuta e da espera. Em consequência, provocou-se um desequilíbrio que apenas aparentemente oprime exclusivamente mulheres, em verdade, esse desequilíbrio tem causado ou contribuído para a estruturação de uma sociedade que rejeita e hostiliza os poderes identificados como femininos em todas as pessoas, de modo que a tensão é experimentada invariavelmente por todos os seres humanos.
Nesse contexto, não é difícil compreender que o desequilíbrio decorrente da sobreposição do masculino sobre o feminino se irradie para outras esferas que aparentemente não guardam relação com o gênero. A título de exemplo, cite-se que faz parte dessa mesma cultura a ilusão de que a economia deve se sobrepor à proteção ao meio ambiente.
Assim, quando se fala no objetivo de desenvolvimento sustentável para o planeta consistente no reconhecimento da igualdade de gênero não se está a projetar nas mulheres as competências esperadas (também distorcidamente) dos homens
[1]; mas se está a validar e respeitar a integralidade e a integridade de qualquer ser humano, com suas peculiaridades e características, independentemente do gênero de identidade.
Em outras palavras, para revelarmos e vivenciarmos a igualdade dos gêneros, em uma sociedade verdadeiramente igualitária e que respeita a dignidade da pessoa humana, não é que tenhamos que distorcer ou condenar os poderes considerados masculinos, e sim que devemos lembrar a igual importância e relevância dos poderes femininos para a constituição equilibrada de qualquer organismo, o que se revela indispensável para o seu desenvolvimento de forma orgânica, sua natural prosperidade e consequente sustentabilidade.
Compreendemos que este é o paradigma sobre o qual deve estar assentado o Poder Judiciário que pretende verdadeiramente assegurar pelas vias institucionais a igualdade de gênero, além de contribuir para que essa mesma igualdade reflita no serviço que presta, promovendo assim uma sociedade pautada na igualdade de todas as pessoas e que reconhece a todas e todos o direito de serem quem são, merecendo igual respeito.
Em vista do exposto acima, não é suficiente para a erradicação das diversas formas de violência de gênero e para o empoderamento de todas as mulheres e meninas, que o Poder Judiciário apenas promova ações e projetos voltados ao combate da violência doméstica e familiar contra a mulher no nível dos juizados competentes para decidirem demandas envolvendo este tema.
É preciso ir além no estabelecimento de políticas internas de fomento ao reconhecimento da igualdade de gênero. É preciso fomentar no Poder Judiciário a cultura da igualdade de gênero, de modo que a resposta natural aos conflitos que de algum modo, ainda que transversalmente, perpassem por questões envolvendo gênero, seja encontrada a partir do paradigma da igualdade de modo cada vez mais orgânico, natural, espontâneo, porque assim é.
O repúdio de práticas jurídicas marcadas pelo machismo deve ser premissa da atuação jurisdicional, que não deverá tolerar petições e falas em audiências que vitimizem ou revitimizem mulheres. É preciso que a perspectiva do feminismo faça parte da rotina forense, com maior preparo dos agentes públicos para lidar com situações que ofendem as mulheres, sejam elas juízas, promotoras, advogadas ou vítimas.
É importante consignar que, tal como se extrai do enunciado do ODS 5, uma chave central para a mudança de cultura que se pretende e necessita alcançar está no empoderamento feminino. É preciso trabalhar políticas institucionais capazes de fomentar nas mulheres e meninas a lembrança de que são livres para serem quem são, não há competição entre elas e os homens, porque são iguais em valor, em qualidade, em dignidade. Evidentemente, políticas nesse sentido devem envolver a conscientização dos homens também, para que os pontos de confronto entre o poder que emerge das mulheres e meninas e os resquícios da cultura que já não se pretende mais, sejam reduzidos até que extintos.
É nesse sentido que se enxerga o panorama para uma política de erradicação à desigualdade de gênero e de empoderamento de todas as mulheres e meninas, a ser desenvolvida e implementada pelo Poder Judiciário, primeiro internamente para então poder extravasar seus serviços irradiando a plenitude de igualdade entre mulheres e homens, independentemente do gênero.
Fonte: Conjur