Alguns pontos chamaram bastante atenção, de pronto. À partida, curiosamente, o caso concreto afetado já havia previamente sido devolvido ao Tribunal de segundo grau por suposto enquadramento, primeiro, no Tema 666 e, depois, no Tema 897, ambos versando sobre a prescritibilidade do ressarcimento ao erário.
Outro ponto disse respeito ao fato de que, da leitura atenta dos autos, a última petição apresentada por qualquer das partes, em novembro de 2021, pugnou por que o Supremo Tribunal Federal, na esteira do que decidido no Tema 897 — imprescritibilidade de ressarcimento ao erário em improbidade somente quando dolosos os atos —, restituísse o feito ao segundo grau a fim de que oportunizar retratação, haja vista que a imputação feita no caso concreto cuidava de ato culposo, estando assim prescrita a sanção de ressarcimento.
Duas questões decisivas defluem do parágrafo anterior: 1) até a última manifestação no ARE 843.989, não identificamos absolutamente nenhuma manifestação, de qualquer das partes, invocando a reforma operada pela Lei 14.230/2021 ou a retroatividade das mudanças por ela operadas, não tendo esses pontos orbitado os debates; e 2) a prevalecer o fato de que o caso concreto em questão se resolveria pela pura e simples aplicação da ratio alcançada no Tema 897, independentemente de discussões sobre retroatividade ou não da reforma, não haveria espaço para que o feito servisse de exemplar para afetação para decisão em repercussão geral.
Alguma ironia não passa despercebida: o Tema 666, em que primeiramente enquadrado o ARE 843.989, o havia sido para servir de arena para o debate da (im) prescritibilidade de ressarcimento ao erário, inclusive em improbidade. Após discussão candente no âmbito da Corte pontuando tratar o caso concreto de acidente automobilístico envolvendo veículo oficial, em situação que nada teria que ver com improbidade, o Tribunal optou por fixar tese mais restrita — prescritibilidade do ressarcimento oriundo de ilícitos civis —, dando azo a que o relator, ministro Teori Zavascki, afetasse imediatamente em seguida um novo caso, esse sim, envolvendo improbidade, a fim de solucionar definitivamente a questão. Como sabido, esse Tema viria a ser o de número 897, que resultou na tese de que o ressarcimento ao erário fundado em improbidade alcança somente atos dolosos.
O que estamos a dizer aqui, a bem da clareza, é que o próprio ARE 843.989 foi refém de uma indefinição que em grande medida perdurou — até o julgamento do Tema 897 — em razão da "má escolha" de um caso concreto como representativo do debate que se buscava travar. Agora — e eis aqui a ironia —, o mesmo ARE 843.989, no bojo do qual não se tratou de retroatividade da Lei 14.230/2021, presta a si próprio como locus para uma discussão que 1) nele mesmo não teve lugar em momento algum e 2) seria irrelevante para sua solução, para qual, em tese, bastaria o que decidido no Tema 897.
Não estamos dizendo aqui que a questão sobre a (ir) retroatividade da Lei nº 14.230/2021 não mereça enfrentamento pelo Supremo Tribunal Federal, absolutamente. O que estamos sim a sustentar é que o ARE 843.989 talvez não fosse o melhor veículo para precipitar essa discussão, não tendo o condão de municiar adequadamente, com um debate maduro, uma análise pela Corte.
A par de tudo isso, tratando da afetação propriamente dita, colhemos da manifestação do relator, ministro Alexandre de Morais, algumas passagens importantes:
Mas calha trazer ainda outra passagem da manifestação do Ministro relator, quando busca ilustrar posição da doutrina refratária à retroatividade da norma benéfica em sede de direito sancionador:
A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal
permite a transpor com reservas o princípio da retroatividade.
Conforme pondera Fábio Medina Osório, "se no Brasil não há dúvidas
quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me
prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse
ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo".
Dali em diante, a tese sustentada pelo autor em seu conhecido livro é no sentido de que o legislador, ao promover mudança da norma em regime administrativo sancionador, poderia 1) prever expressamente a retroatividade, 2) vedar peremptoriamente a retroatividade e 3) silenciar. A propósito dessa última hipótese, dirá o autor:
Independentemente desse ponto, temos ainda que um aspecto de suma relevância parece ter passado ao largo da decisão de afetação: o fato de que, a despeito de o artigo 5º, XL, da Constituição, aparentemente se limitar ao direito penal — interpretação literal que advogaria em favor da irretroatividade em direito sancionador —, o artigo 9º do Pacto de San José da Costa Rica, ao replicar o princípio da retroatividade da lei benigna, não o cingiu à seara criminal, de modo que, conhecido o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que ostentaria a referida convenção status supralegal, sua dicção, sozinha, já haveria de se sobrepor à legislação infraconstitucional (Lei nº 14.230/2021), particularmente no que concerne à interpretação sobre a extensão dos efeitos de alterações positivas.
Enfim, temos para nós que o tema da (ir) retroatividade das mudanças favoráveis imprimidas pela Lei 14.230/2021 decerto chegaria ao Supremo Tribunal Federal em algum momento; cremos, todavia, que a discussão poderia merecer maior amadurecimento e caso concreto que mais bem representasse os argumentos de lado a lado.
Todos os direitos reservados
MPM Sites e Sistemas - CNPJ: 12.403.968/0001-48