O Tema 1.199 de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal afetou o ARE 843.989 como Tema (1.199) representativo de repercussão geral a fim de dirimir a controvérsia sobre a (ir) retroatividade das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, em especial 1) a necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e 2) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente.

Alguns pontos chamaram bastante atenção, de pronto. À partida, curiosamente, o caso concreto afetado já havia previamente sido devolvido ao Tribunal de segundo grau por suposto enquadramento, primeiro, no Tema 666 e, depois, no Tema 897, ambos versando sobre a prescritibilidade do ressarcimento ao erário.

Outro ponto disse respeito ao fato de que, da leitura atenta dos autos, a última petição apresentada por qualquer das partes, em novembro de 2021, pugnou por que o Supremo Tribunal Federal, na esteira do que decidido no Tema 897 — imprescritibilidade de ressarcimento ao erário em improbidade somente quando dolosos os atos —, restituísse o feito ao segundo grau a fim de que oportunizar retratação, haja vista que a imputação feita no caso concreto cuidava de ato culposo, estando assim prescrita a sanção de ressarcimento.

Duas questões decisivas defluem do parágrafo anterior: 1) até a última manifestação no ARE 843.989, não identificamos absolutamente nenhuma manifestação, de qualquer das partes, invocando a reforma operada pela Lei 14.230/2021 ou a retroatividade das mudanças por ela operadas, não tendo esses pontos orbitado os debates; e 2) a prevalecer o fato de que o caso concreto em questão se resolveria pela pura e simples aplicação da ratio alcançada no Tema 897, independentemente de discussões sobre retroatividade ou não da reforma, não haveria espaço para que o feito servisse de exemplar para afetação para decisão em repercussão geral.

Alguma ironia não passa despercebida: o Tema 666, em que primeiramente enquadrado o ARE 843.989, o havia sido para servir de arena para o debate da (im) prescritibilidade de ressarcimento ao erário, inclusive em improbidade. Após discussão candente no âmbito da Corte pontuando tratar o caso concreto de acidente automobilístico envolvendo veículo oficial, em situação que nada teria que ver com improbidade, o Tribunal optou por fixar tese mais restrita — prescritibilidade do ressarcimento oriundo de ilícitos civis —, dando azo a que o relator, ministro Teori Zavascki, afetasse imediatamente em seguida um novo caso, esse sim, envolvendo improbidade, a fim de solucionar definitivamente a questão. Como sabido, esse Tema viria a ser o de número 897, que resultou na tese de que o ressarcimento ao erário fundado em improbidade alcança somente atos dolosos.

O que estamos a dizer aqui, a bem da clareza, é que o próprio ARE 843.989 foi refém de uma indefinição que em grande medida perdurou — até o julgamento do Tema 897 — em razão da "má escolha" de um caso concreto como representativo do debate que se buscava travar. Agora — e eis aqui a ironia —, o mesmo ARE 843.989, no bojo do qual não se tratou de retroatividade da Lei 14.230/2021, presta a si próprio como locus para uma discussão que 1) nele mesmo não teve lugar em momento algum e 2) seria irrelevante para sua solução, para qual, em tese, bastaria o que decidido no Tema 897.

Não estamos dizendo aqui que a questão sobre a (ir) retroatividade da Lei nº 14.230/2021 não mereça enfrentamento pelo Supremo Tribunal Federal, absolutamente. O que estamos sim a sustentar é que o ARE 843.989 talvez não fosse o melhor veículo para precipitar essa discussão, não tendo o condão de municiar adequadamente, com um debate maduro, uma análise pela Corte.

A par de tudo isso, tratando da afetação propriamente dita, colhemos da manifestação do relator, ministro Alexandre de Morais, algumas passagens importantes:



"(...) o INSS, na petição inicial, embasa seu pleito de ressarcimento ao erário imputando à requerida conduta negligente na condução dos processos judiciais na condição de representante do INSS, com realce ao parecer final da Procuradoria da Autarquia no qual consignado a incúria da requerida no desempenho de sua atividade contratual.

Ou seja, exsurge dos autos não haver qualquer menção a eventual conduta dolosa, pelo que a assunção feita pelo Tribunal de origem acerca da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento de danos causados ao erário por atos de improbidade administrativa ocorridos após Constituição Federal de 1988, sem qualquer consideração ao elemento subjetivo dolo, e ante o advento da Lei 14.230/2021, que tornou o dolo imprescindível para a configuração do ato de improbidade administrativa, coloca-se para exame do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL definir se as novidades inseridas na LIA devem retroagir para beneficiar aqueles que porventura tenham cometido atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, inclusive quanto ao prazo de prescrição para as ações de ressarcimento".

O referido trecho merece algumas anotações. Uma vez admitido que a imputação do INSS foi de ato culposo — negligência —, não haveria campo para que o Tribunal de segundo grau avançasse ultra petita para condenação por ato doloso. E tendo presente que a parte ré deixou seu cargo no segundo semestre de 1998, sendo a ação de improbidade ajuizada em 2006, o que ressai é que: 1) não retroagindo a Lei 14.230/2021, a pretensão de ressarcimento ao erário estaria prescrita por força do Tema 897, ultrapassados os cinco anos do diploma original; 2) retroagindo a Lei 14.230/2021, o ato em questão nem sequer seria ímprobo — exigido que é o dolo — e nem o incremento do prazo prescricional (oito anos) retroagiria, porque maléfico à ré, o que é ponto pacífico e não é objeto da afetação do Tema 1.199. É dizer, o tema da (ir)retroatividade da reforma é de fato irrelevante para o caso concreto.

Mas calha trazer ainda outra passagem da manifestação do Ministro relator, quando busca ilustrar posição da doutrina refratária à retroatividade da norma benéfica em sede de direito sancionador:



Esse também é o entendimento de Fábio Medina Osório, para quem, no tocante ao princípio da retroatividade da norma mais benéfica, "o direito administrativo sancionador não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo". É que, em regra, a lei que extingue a figura do ilícito administrativo ou toma a sanção administrativa mais branda não retroage para beneficiar quem praticou a infração administrativa sob a égide da lei anterior (Direito Administrativo Sancionador, 5ª ed., São Paulo: RT, 2015. p. 201).

O excerto acima incorreu em mesmo equívoco em que se enredou, anos antes, julgado do Superior Tribunal de Justiça (RMS 33.484, DJ 1.8.2013):

A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal

permite a transpor com reservas o princípio da retroatividade.

Conforme pondera Fábio Medina Osório, "se no Brasil não há dúvidas

quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me

prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse

ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo"
.



Ambas as decisões, ao mencionar dado autor, recorreram a um pequeno recorte de sua obra para pretender sustentar respaldo doutrinário à tese da irretroatividade da norma benigna em sede de direito sancionador. Ocorre que o citado professor, em seu escrito, não é refratário à retroatividade, de modo algum, como indica a sequência de seu raciocínio: "o fato de não haver a equiparação, não obstante, pouco revela sobre a retroatividade das normas sancionatórias mais benéficas. Ao contrário, a ausência de equiparação apenas demonstra que eventual retroatividade poderia ocorrer em níveis diferenciados, com intensidade variada".

Dali em diante, a tese sustentada pelo autor em seu conhecido livro é no sentido de que o legislador, ao promover mudança da norma em regime administrativo sancionador, poderia 1) prever expressamente a retroatividade, 2) vedar peremptoriamente a retroatividade e 3) silenciar. A propósito dessa última hipótese, dirá o autor:



O desafio mais difícil consiste em interpretar o silêncio legal na cadeia de normas sucessivas. Uma norma sancionadora mais favorável nada dispõe sobre o tema, deixando ambígua sua posição. E os valores por ela tutelados são relativamente estáveis, daqueles que demandam políticas públicas punitivas coerentes e centradas em escolhas racionais, dotadas de vocação à estabilidade, o que revelaria, a priori, a vocação à retroatividade. Em tais casos, não há dúvidas de que as normas retroagem, como se fosse o próprio Direito Penal, na busca de salvaguardar critérios de justiça e segurança, em homenagem ao tratamento simétrico com a outra principal vertente do Direito Punitivo. Essa retroatividade está amparada na cláusula constitucional do devido processo legal e nos valores ali abrigados.

Como se percebe, o principal fiador teórico elencado como representante da corrente pela irretroatividade da norma benéfica em direito sancionador é, na verdade, favorável à tese, tanto assim que, recentemente, tendo por enfoque precisamente a Lei nº 14.230/2021, teve ele a oportunidade de não deixar dúvidas sobre sua posição, enfatizando a retroatividade da reforma no que favorável aos réus em improbidade.

Independentemente desse ponto, temos ainda que um aspecto de suma relevância parece ter passado ao largo da decisão de afetação: o fato de que, a despeito de o artigo 5º, XL, da Constituição, aparentemente se limitar ao direito penal — interpretação literal que advogaria em favor da irretroatividade em direito sancionador —, o artigo 9º do Pacto de San José da Costa Rica, ao replicar o princípio da retroatividade da lei benigna, não o cingiu à seara criminal, de modo que, conhecido o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que ostentaria a referida convenção status supralegal, sua dicção, sozinha, já haveria de se sobrepor à legislação infraconstitucional (Lei nº 14.230/2021), particularmente no que concerne à interpretação sobre a extensão dos efeitos de alterações positivas.

Enfim, temos para nós que o tema da (ir) retroatividade das mudanças favoráveis imprimidas pela Lei 14.230/2021 decerto chegaria ao Supremo Tribunal Federal em algum momento; cremos, todavia, que a discussão poderia merecer maior amadurecimento e caso concreto que mais bem representasse os argumentos de lado a lado.



Fonte: Conjur

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