Os limites do chamado ativismo judicial

No dia 6 de maio, o Brasil assistiu a uma trágica operação policial na comunidade do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes. Ante o incontestável fiasco da operação, o subsecretário Operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro veio a público criticar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 635, colocando-a como um caso de ativismo judicial  (que, aparentemente, teria minado o trabalho policial). É fato que o Supremo há muito tempo deixou de ser um mero coadjuvante da vida política nacional e é, hoje, pelo contrário, um de seus principais protagonistas. E, ademais, é absolutamente natural que, nesse contexto institucional, surjam críticas e considerações a respeito da atuação do tribunal . A indagação que, porém, se revela interessante (à luz justamente destas críticas de um ativismo da corte) é até que ponto esse ativismo e o controle de constitucionalidade, exercido por uma corte como o STF, caminham juntos ou não.

Nada parece mais apropriado para responder tal questão do que começar com um brevíssimo excurso pela história das Constituições e do controle de constitucionalidade. Explico. As Constituições, tal como nós usualmente as concebemos (documentos que organizam o Estado e garantem direitos e garantias fundamentais), surgiram, na história, fortemente atreladas ao pensamento do Iluminismo, que via a figura dos juízes como membros de uma nobreza de toga, com muita desconfiança e, pode se dizer, até com bastante hostilidade . Como consequência lógica dessa atitude iluminista para com os juízes — e, no arranjo de separação dos poderes, com o Poder Judiciário — nas primeiras Constituições o Judiciário foi tolhido e visto como um poder menor, desimportante e até mesmo "nulo" , como colocou Montesquieu anos antes, em 1748. Esse arranjo original, porém, durou pouco. Em 1803, a Suprema Corte estadunidense proferiu o celebre julgado do caso Marbury vs. Madison  (julgado este, bom ressaltar, proferido em um contexto altamente politizado) , declarando a supremacia da Constituição. Quase 30 anos depois, Alexis de Tocqueville, que visitou os Estados Unidos nos anos de 1830, voltou de lá com a observação de que o Judiciário era uma instituição de grande importância política . Em suma, o arranjo da democracia madinsoniana falhou . O fato de que (tomando por base, evidentemente, a experiência americana, que é de onde deriva, aliás, o termo ativismo judicial) em pouco mais de 40 anos as cortes saíram de um claustro institucional no qual haviam sido confinadas, pelo iluminismo, e alcançaram importância política é, sem dúvidas, importante para entender as origens do discurso do ativismo.

É fato que o pensamento político, como visto acima, coloca limites dentro dos quais o Judiciário deveria operar. O discurso de que existe um ativismo judicial, porém, não se limita ao pensamento político e busca respostas na teoria geral do Direito. E, nessa seara, são várias as respostas. Em primeiro lugar, há quem sustente, como o faz Dworkin, que a própria ideia de ativismo judicial não faz sentido ; e há uma clivagem interessante — ainda que hoje praticamente superada — entre os que defendem a existência de uma corte de controle de constitucionalidade (como Kelsen) e aqueles que não a defendem (como Schmitt) . Evidentemente, o interesse aqui reside nos primeiros.

É entre os primeiros, na realidade, que a questão adentra na seara da teoria geral do Direito. Explico. Uma vez que são os juízes quem exercem o controle de constitucionalidade, a própria atividade dos juízes, enquanto intérpretes do texto legal, se torna problemática. Benjamin N. Cardozo, que foi juiz da Suprema Corte estadunidense, aponta, sobre o ofício do juiz, que:

"O trabalho de decidir causas se faz diariamente em centenas de tribunais de todo o planeta. Seria de imaginar que qualquer juiz descrevesse com facilidade os procedimentos que já aplicou milhares de vezes. Nada poderia estar mais longe da verdade" .

A perspectiva, certamente, é desalentadora. Mas é exatamente nesse contexto que surgem as mais diversas teorias sobre a interpretação: Kelsen, autor dos mais célebres entre nós, brasileiros, aponta que os intérpretes devem conter-se dentro de uma moldura ; Hart fala nos casos claros (para os quais há resposta) e nos casos de penumbra (para os quais não há, necessariamente, uma resposta certa); John Hart Ely, em uma célebre monografia sobre o ativismo judicial, faz uma clivagem entre autores interpretativistas (aqueles que acreditam que as decisões da Suprema Corte devem ter um fulcro claro em legislação) e não interpretativistas (aqueles que acreditam que o Judiciário deve intervir na sociedade)  e tenta vencer a questão fazer uma teoria sua, defendendo que a Constituição estadunidense não defende valores, mas, sim, o processo democrático (no que é extremamente criticado).

Esse apanhado teórico pode parecer desinteressante, mas é ele que revela a natureza do problema do chamado ativismo judicial: os limites da interpretação. Uma vez que é praticamente pacífico, hoje, que são os juízes quem devem realizar o controle de constitucionalidade, o limite da atuação dos juízes enquanto intérpretes das normas jurídicas torna-se um problema típico de teoria geral do Direito, afastando-se gradativamente da seara do Direito Constitucional. É verdade, por outro lado, que o conteúdo das normas às quais, por exemplo, Kelsen aponta que os juízes devem se conter (sua moldura) são dadas pelo sistema político, mas isso é apenas uma parte da equação. É na violação da moldura posta pelas normas (para os que acreditam que existe tal moldura) que o ativismo reside, e esse ativismo não é restrito às normas e molduras da Constituição, mas pode dizer respeito a qualquer norma. Isso, em suma, significa que para alguém criticar uma decisão do STF como ativista, é necessário que esse indivíduo veja qualquer norma como capaz de colocar uma moldura e qualquer juiz como capaz de ir além de tal moldura, não somente o STF. Caso contrário, tal crítica perde coerência interna e, sem essa coerência, falar em ativismo não passa de um modo de desqualificar (em pseudojuridiquês) uma decisão com a qual o crítico não concorda. Ou, respondendo a questão inicialmente posta, ativismo judicial e controle de constitucionalidade não estão inexoravelmente ligados.

Fonte: Conjur

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