Ponderações sobre a ingerência do Cade nos mercados de trabalho
O
Direito da Concorrência dialoga constantemente com outras áreas. Essa afirmação fica evidente quando se está diante, por exemplo, de uma operação no mercado de telecomunicações, de energia elétrica ou de transportes. Isso porque tais mercados são regulados e na análise de Atos de Concentração pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) pode ser necessário que a autoridade recorra a normas setoriais, ficando claro que há uma intersecção entre algumas áreas.
De outra monta, o que aqui se pretende explorar é se há uma relação entre Direito Antitruste e Direito do Trabalho, áreas que parecem um tanto desconexas. No Brasil, as discussões envolvendo as interações entre esses dois ramos são iniciais. Contudo, o tema vem despertando atenção de autoridades concorrenciais ao redor do mundo, razão pela qual, o debate deve incrementar cada vez mais.
Em um primeiro momento, cabe destacar que há todo um contexto específico — mais atual —, que dá asas a essa discussão. Em 9 de julho de 2021 foi publicada o
Executive Order, ou decreto norte-americano pelo presidente Joe Biden. O decreto apresentou algumas iniciativas para promover a competição na economia americana. Dentre as propostas apresentadas, o documento aborda os mercados de trabalho, afirmando que
"a concorrência nos mercados de trabalho pode capacitar os trabalhadores a exigirem salários mais altos e maior dignidade e respeito no local de trabalho".
Assim, entre as iniciativas propostas no decreto, o presidente Joe Biden determinou (1) que a Federal Trade Commission banisse ou limitasse acordos de
non-compete; e (2) que a Federal Trade Commission
e o Department of Justice fortalecessem guias antitruste para evitar que os empregadores atuem em colusão e acabem por suprimir salários ou reduzir benefícios por meio da troca de informações concorrencialmente sensíveis entre si.
Além do atual decreto norte-americano, cabe salientar que autoridades antitruste ao redor do mundo já publicaram documentos abordando a relação entre Direito do Trabalho e Direito Antitruste. Destaca-se o Guia Antitruste para Profissionais de Recursos Humanos, publicado em 2016 pelo
Department of Justice e Federal Trade Commission, nos Estados Unidos, elaborado com o objetivo de alertar os departamentos de recursos humanos das empresas e demais envolvidos na contratação e remuneração de trabalhadores sobre eventuais condutas anticoncorrenciais. Em 2018, a
Japan Fair Trade Commission também publicou documento envolvendo a temática. Já em Hong Kong, também em 2018, foi publicado boletim informativo sobre preocupações concorrenciais envolvendo certas práticas nos mercados de trabalho.
Em 2019, a OCDE publicou documento com base em contribuições fornecidas pela autoridade concorrencial brasileira, denominado "Questões concorrenciais nos mercados de trabalho", no qual, logo no início, se afirmou que as autoridades antitruste raramente observaram a formação do poder de monopsônio nos mercados de trabalho.
Nesta toada, o Cade instaurou, em 2021, o primeiro processo administrativo para apurar supostas condutas anticompetitivas no mercado brasileiro de trabalhadores atuantes na indústria de produtos, equipamentos e serviços correlatos para cuidados com a saúde (
healthcare).
Feitas essas ponderações iniciais, o que pretendemos apresentar no presente artigo é uma outra visão no que se refere às possíveis relações entre Direito Antitruste e mercados de trabalho. Nesse sentido, o professor Richard Epstein apresenta argumentos interessantes defendendo que o direito antitruste não deve ser estendido para os mercados de trabalho.
Segundo o professor, historicamente, os mercados de trabalho foram considerados suficientemente competitivos de modo que nenhum tipo de supervisão antitruste era necessário. Defende que essa abordagem que ele denomina de "tradicional" era — e ainda é, a correta. Situações em que empregadores competem para contratar determinado funcionário são a regra, e não a exceção. Nesse sentido, os empregadores se adaptam e, muitas vezes, buscam funcionários até mesmo de outras áreas, tendo em vista que as habilidades almejadas podem ser facilmente transferidas de uma área de atuação para outra.
Na visão do professor, também não há qualquer tipo de comprovação que sustente a ideia de que aplicar as leis antitruste aos mercados de trabalho melhorará os níveis de dignidade e respeito aos trabalhadores no ambiente de trabalho, como quer fazer crer o decreto norte-americano.
No que se refere aos acordos de
non-compete, também abordados no decreto americano, ao argumento de que impõem obstáculos à capacidade dos trabalhadores que atuam no setor de varejo ou construção, por exemplo, em mudarem para empregos mais bem pagos, Epstein lembra que estes acordos estão sujeitos à regra da razão e já há limites para a sua aplicação, como: (1) geralmente, não podem durar mais de um ano; (2) aplicam-se apenas aos ramos de negócios já existentes e não aos novos que o empregador pode desejar estabelecer; (3) aplicam-se apenas no mercado geográfico em que o empregador atua. Esses limites existem justamente para garantir que o ex-funcionário possa se tornar ou trabalhar para um concorrente do ex-empregador no futuro.
Shapiro, acadêmico na área de concorrencial, por sua vez, reconhece que, apesar da necessidade por maior intervenção antitruste, não se pode esperar que o antitruste resolva todos os problemas políticos e sociais que os Estados Unidos enfrentam, bem como não pode ser o principal meio de abordar a desigualdade de renda, pois são as políticas fiscais e de emprego que precisam desempenhar esse papel.
Uma vez abordadas essas ideias, apesar do evidente destaque à intervenção antitruste nos mercados de trabalho, a análise antitruste certamente passará por alguns desafios ao olhar para estes mercados. Como exemplo disso, podemos indicar a definição de mercado relevante, uma vez que não necessariamente concorrentes no mesmo mercado relevante do produto serão concorrentes no mercado relevante de trabalho. Ou seja, empresas que atuam em mercados relevantes distintos podem concorrer pelos mesmos funcionários. Nesse sentido, indicamos o caso
The State of California v. Ebay Inc., envolvendo acordo de
no-poach (ou acordo de não-aliciamento) firmado entre eBay e Intuit, que apesar de não serem concorrentes no mercado relevante do produto, concorriam pelo mesmo tipo de funcionário, qual seja, engenheiros de computação.
Ademais, é preciso destacar que na Europa ainda não está claro se autoridades concorrenciais irão investigar estes casos isoladamente ou se estes mercados de trabalho ainda serão secundários nas investigações. Em artigo, ao abordar o poder de monopsônio em mercados de trabalho, sob a perspectiva europeia, Posner reconhece que o direito concorrencial europeu pode abordar algumas formas de comportamento anticompetitivo em mercados de trabalho, mas que há limites.
É sabido que o Cade está atento aos possíveis tipos de condutas anticoncorrenciais envolvendo o mercado de trabalho, conforme demonstra o recente processo administrativo instaurado pela autoridade concorrencial já destacado nesse artigo. Contudo, é fundamental uma atuação com cautela para que este novo olhar do antitruste não acabe por prejudicar negócios inovadores ou comprometer a segurança jurídica pautada em uma jurisprudência que, ao menos na autoridade concorrencial brasileira, baseia-se no paradigma neoclássico.
A Constituição Federal, a Consolidação das Leis do Trabalho e as legislações esparsas existem para proteger tanto o empregado quanto o empregador. A Lei de Defesa da Concorrência visa a proteção da ordem econômica.
Nesse sentido, é preciso cuidado com eventual excesso de regulação,
ex ante e
ex post, em possíveis problemas que ainda padecem de comprovação. Vislumbra-se, assim, que muitos serão os desafios enfrentados em casos envolvendo o Direito Concorrencial e o Direito do Trabalho na seara concorrencial.
Fonte: Conjur