Por que precisamos de Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório?

O Direito Antidiscriminatório é um subsistema de recentíssimo desenvolvimento que postula ainda lugar entre os demais ramos jurídicos, mas já demonstra notável potencial social, político e acadêmico. O "Tratado de Direito Antidiscriminatório", de Adilson José Moreira, foi publicado apenas em 2020. Na esteira, autores e autoras levaram a discussão para ramos mais específicos, particularmente para o Direito Penal (MASIERO, 2021; MOREIRA, 2021).

O tema não é exatamente novo. Os efeitos adversos das normas e decisões jurídicas sobre determinados indivíduos e grupos sociais já foram objeto da Teoria Crítica e de outros estudos do Direito genericamente agrupados sob o rótulo de "alternativos" (BARROSO, 2009, p. 245ss.). Outros autores e autoras, sem se filiarem expressamente a nenhum movimento ou nomenclatura, vêm abordando problemas como o racismo, o machismo e a homofobia, por exemplo, a partir de uma perspectiva jurídica que poderia ser corretamente chamada de antidiscriminatória.

Há ganhos, porém, ao agrupar essas discussões e dar-lhes status de ramo jurídico próprio. Moreira (2020) propõe-se a sistematizá-las, conferindo-lhes fundamentos teóricos (filosóficos, antropológicos, políticos e jurídicos) e um objeto único, o conceito de igualdade. Neste artigo, sintetizo algumas das principais propostas do autor e exponho alguns conceitos essenciais de sua obra, para, ao final, defendera necessidade de desenvolvimento de um Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório.

Direito Antidiscriminatório: objeto, objetivos e conceitos essenciais

É conhecido a ironia de Anatole France (1898, c. VII), "A lei, em sua majestosa igualdade, proíbe tanto o rico quanto o pobre de dormirem sob pontes, mendigarem nas ruas e roubarem pão". Ele resume com maestria os problemas da concepção de igualmente predominante no século 19. O chiste, extraído de "O Lírio Vermelho" (1894), prenuncia a contraposição que marcaria o século 20, entre a igualdade formal, ou igualdade negativa, de todos perante a lei, e a igualdade material, ou igualdade de bem-estar, como destinatários da prestação de bens e serviços.

A CF/88 foi concebida sob influência dessa contraposição. Não por coincidência, os primeiros administrativistas a estudá-la, como Mello (1993), dedicaram obras inteiras a tratar das duas igualdades, e constitucionalistas, como Bonavides(2008, p. 370 ss.), sentiram-se compelidos a situar a CF/88 entre os Estados Liberal ou Social — outra dicotomia que, em essência, reproduz a disputa entre aquelas concepções. Essa mesma disputabalizou a discussão sobre normas programáticas (SILVA, 2008, p. 140 ss.), que aprisionou os debates acerca da hermenêutica e da efetividade dos direitos fundamentais por mais de uma década.

Moreira (2020) tenta superar a contraposição entre igualdades formal e material, que estaria esgotada. Para ele, a igualdade formal é insuficiente porque nem toda discriminação é direta, baseada em critérios de diferenciação juridicamente inválidos. Nem necessariamente constitui um desvio do dever de tratar a todas as pessoas como iguais, ou pressupõe a intencionalidade e a arbitrariedade de agentes públicos ou privados. Normas jurídicas formalmente igualitárias podem ter impacto desproporcionalmente negativo para indivíduos e grupos vulneráveis. Mas a igualdade material também é insuficiente, porque desconsidera que as desvantagens impostas não são sempre materiais; "a vida humana possui uma série de dimensões e a integração social depende da igualdade em todas elas", afirma Moreira (2020, p. 40).

Para o autor, o Direito Antidiscriminatório difere das abordagens anteriores porque trata a igualdade como um conceito complexo, multidimensional e relacional. É complexo porque depende de fatores interseccionais nem sempre óbvios; multidimensional, porque seu conteúdo mobiliza as esferas jurídica, moral, lógica, política, psicológica e diferenciativa; e relacional, porque está estruturalmente relacionado à discriminação, positiva ou negativa. Decorre disso a existência de diferentes tipos de igualdade, exigíveis a depender do contexto. No entanto, ainda seria possível falar na igualdade, em um sentido mais abstrato, como um princípio de emancipação humana, cuja efetivação depende da concretização do sistema jurídico protetivo.

Moreira (2020, p. 50) define o sistema protetivo como um subsistema do Direito Constitucional composto por normas que visam "reduzir ou eliminar disparidades significativas entre grupos", impedindo a discriminação negativa e promovendo a discriminação positiva. Coerentemente com essas definições, o autor inclui entre os objetivos específicos do Direito Antidiscriminatório: o estudo do impacto da aplicação das normas sobre situações de exclusão; a proposição de um referencial teórico adequado para identificar os problemas enfrentados por pessoas e grupos minorizados e embasar soluções jurídicas; e a formulação de propostas institucionais e políticas públicas de proteção de minorias e grupos vulneráveis.

A necessidade de um Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório

Sem muito esforço, é possível extrapolara partir da proposta de Moreira, para afirmar a necessidade de nos debruçarmos sobre o sistema jurídico protetivo destinado a reduzir ou eliminar disparidades entre grupos e indivíduos no exercício dos direitos políticos, na participação político-partidária e no acesso às instâncias de representação política. Nas últimas décadas, uma série de decisões judiciais, reformas e propostas legislativas em matéria eleitoral apontaram para a existência de normas que poderiam ser agrupadas sob o epíteto de um Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório. Todavia, esse conjunto, difuso, está ainda à espera de adequada teorização e efetivação.

Alguns exemplos são ilustrativos. A Lei 9.504/97 contém, desde sua promulgação, normas destinadas a promover a participação política feminina. No entanto, a primeira interpretação dada à mais significativa delas, o §3º do artigo 10, que prevê percentuais mínimos e máximos de candidaturas por gênero, esvaziou seu conteúdo, o que se tentou contornar posteriormente por meio de reformas legislativa se mudança jurisprudencial. Mesmo assim, a efetividade das mudanças esbarrou na persistência de uma concepção demasiadamente alargada da autonomia partidária. Só muito recentemente, no julgamento da ADI 5.617, o STF definiu um percentual mínimo do fundo partidário reservado a candidaturas femininas (BRASIL, 2018). Seguiu-se uma decisão semelhante relativa a candidaturas negras (BRASIL, 2020) — que, até 2017, nem mesmo contavam com incentivos legislativos expressos.

Essas recentíssimas decisões, conquanto sejam positivas por serem igualitárias, revelam também que a sociedade brasileira vem tolerando, por mais três décadas, um déficit de cidadania e representatividade política que é flagrantemente incompatível com o projeto pluralista da CF/88. A baixíssima representação de mulheres e negros no Legislativo, apesar de serem os grupos socialmente mais numerosos nas respectivas categorias, de gênero e raça (Bond, 2020), indica que há em operação mecanismos sociais, institucionais e jurídicos de discriminação negativa, ainda não completamente identificados nem, por isso mesmo, adequadamente enfrentados. Essas e outras questões envolvendo os direitos e a participação política de pessoas LGBTQIA+, indígenas e outros grupos vulneráveis demandam a formulação de políticas públicas e do desenvolvimento de uma hermenêutica jurídica protetiva, de discriminação positiva.

Já há algumas inciativas nesse sentido. O Grupo de Trabalho para Sistematização das Normas Eleitorais (SNE), criado pelo TSE em 2019, produziu diversos estudos sobre o impacto desproporcional de leis eleitorais não deliberadamente discriminatórias. Nunes et al. (2021), por exemplo, demonstraram que a exigência de prova documental de vínculo com a localidade para a fixação do domicílio eleitoral dificulta ou mesmo impede o alistamento eleitoral de ribeirinhos, quilombolas, pessoas em situação de rua e membros de comunidades tradicionais. O TSE contemplou várias dessas questões na Resolução 23.659, que traz regras de discriminação positiva para promover o alistamento e o voto de indígenas, pessoas transgêneras e com deficiência, integrantes de comunidades remanescentes etc. (BRASIL, 2021).

No entanto, ainda há muito a fazer para reduzir o histórico déficit de cidadania e representatividade a que indivíduos e grupos politicamente minorizados — a maior parte da população brasileira — têm sido submetidos. A academia não pode se furtara fornecer o aporte teórico necessário para orientar o diagnóstico e as propostas de solução dos problemas. Afinal, ela mesma contribui para a persistência de situações de discriminação negativa, ainda que inadvertidamente.

Cito dois exemplos. Ainda hoje, alguns autores de Direito Constitucional e Eleitoral não incluem o voto exclusivamente masculino entre as espécies de sufrágio restrito e se referem à proibição do voto dos analfabetos exclusivamente como espécie de sufrágio capacitário — não como o que de fato é, uma espécie desufrágio racial. Neste caso, a inadequada categorização impede que cheguemos à necessária e chocante conclusão de que, até 1985, quando se permitiu o voto dos analfabetos, o Brasil praticou o sufrágio racial, embora as constituições republicanas o definissem como universal.

Conclusão

É recentíssimo o desenvolvimento do Direito Antidiscriminatório, ramo próprio do conhecimento jurídico dedicado a estudar a igualdade como um conceito complexo, multidisciplinar e relacional. Na visão de Moreira (2020), a igualdade, no sentido abstrato de um princípio de emancipação humana, só se concretiza por meio de um sistema protetivo de normas que visam reduzir ou eliminar disparidades significativas, impedindo a discriminação negativa e promovendo a discriminação positiva.

Neste artigo, defendi, extrapolando a partir das ideias do autor, que se faz necessária a formulação de um Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório, destinado a reduzir ou eliminar disparidades entre grupos e indivíduos no exercício dos direitos políticos, na participação político-partidária e no acesso às instâncias de representação política. Como argumentei, a academia não pode se furtar a fornecer o aporte teórico para tanto, nem a refletir sobre seu próprio papel na persistência do quadro geral de exclusão eleitoral de pessoas e grupos politicamente minorizados. Nesse contexto, é alvissareira a iniciativa da Abradep, de promover, juntamente coma ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as), o primeiro curso de extensão em "Direito Eleitoral e Político Antidiscriminatório no Brasil".

Fonte: Conjur

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