PPI, abuso do direito de demandar e deferência judicial
O CNJ vem de editar a Recomendação nº 129 de 15/6/2022, que
"recomenda aos tribunais a adoção de cautelas visando a evitar o abuso do direito de demandar que possa comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), previsto na Lei nº 13.334/2016". Uma leitura mais aprofundada do texto sugere sinais de possível mudança saudável no exercício do controle judicial de grandes iniciativas desenvolvidas pela administração. Há luz no final do túnel.
A partir da identificação de um exercício abusivo do direito de demandar
"com o intento de questionar projetos, leilões ou contratos de infraestrutura que se encontram em fases de desenvolvimento", o ato normativo instrui os julgadores a, antes de formularem decisões relacionadas a tutelas de urgência: 1) ouvir os órgãos da administração pública responsáveis pelo projeto de que trata o
caput (artigo 3º, II); e 2) dialogar com protocolo formulado pelo mesmo CNJ, destinado a
"subsidiar suas decisões quanto às ações referentes aos projetos de que trata o caput
".
No primeiro ponto — necessidade de oitiva prévia da administração — haverá quem sustente que a Recomendação nº 129 de 15/6/2022 limita-se a reiterar cautela que haveria de ser tida como intuitiva. É natural que iniciativas da envergadura daquelas contidas no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) compreendam fase preparatória de desenvolvimento de projeto onde se tenha por veiculada a justificativa técnica de cada qual das opções estratégicas formuladas pela administração. Disso decorre que acolher argumentos de censura à iniciativa controlada para determinar tutela de urgência sem a oportunidade de manifestação da administração importa em descartar a presunção (relativa, é verdade, mas fixada em sede constitucional) de legalidade e veracidade dos atos administrativos. A par disso, inequívoco o prejuízo à pretensão à tutela jurídica, indicada pelo STF no RE 434.059 como real conteúdo da garantia insculpida no artigo 5º, LV CF. Afinal, a simples comunicação da eventual decisão desfavorável à administração em sede de tutela de urgência, ainda que atenda ao direito à informação quanto ao havido; não se revela suficiente a assegurar o direito à manifestação, e menos ainda aquele a ver seus argumentos considerados — sendo certo que a pretensão à tutela jurídica, tradução do conteúdo material do direito de defesa, é de compreender, segundo o precedente citado, aos três componentes.
Parece útil a explicitação empreendida pela Recomendação nº 129 de 15/6/2022, da necessidade de oitiva prévia da administração, quando menos para ter-se por claro que a providência é mais do que pertinente, ainda que em sede de tutela de urgência. Afinal, suspensões decorrentes deste tipo de juízo provisório podem resultar prejuízos significativos à iniciativa como um todo — não raro, projetos de infraestrutura se desenvolvem em etapas estruturadas e sequenciadas, que podem se ver frustradas pelo provimento de urgência. Não se pode olvidar igualmente que em se cuidando especificamente de programas de infraestrutura, a paralisação da ação pública frustra o intuito de qualificar o ambiente econômico como um todo, que se ressentiria de arcabouço necessário a seu desenvolvimento ideal, donde o prejuízo pode ultrapassar em muito os estreitos limites do simples querer do administrador.
O ponto de maior avanço da Recomendação nº 129 de 15/06/2022, todavia, está na indicação de parâmetros a serem considerados quando da formulação do juízo provisório nela cogitado. O primeiro deles diz respeito à observância do "procedimento de governança" indicado no Anexo da mesma Recomendação nº 129 de 15/06/2022 — que nada mais é do que a descrição ainda que em linhas gerais, dos agentes envolvidos e procedimentos requeridos para a formulação de escolhas públicas no âmbito do PPI. Cogita-se, portanto, de um controle procedimental do modo de formulação da iniciativa que se supõe tenha favorecido uma "cultura de planejamento e probidade". Mais ainda, com isso se permite ao juízo a aferição de que na construção da ação pública que se quer controlar, tenha sido efetivamente aplicada a capacidade institucional que é própria de cada qual dos agentes indicados como relevantes à decisão.
Integra ainda o protocolo Anexo da Recomendação nº 129 de 15/6/2022, uma síntese da carteira de projetos contidos no PPI, informação que favorece a identificação dos possíveis efeitos reflexos de uma decisão específica em relação ao programa como um todo. Municia-se assim o julgador de uma visão geral do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), para que a eventual intervenção controladora possa se dar em terreno sólido — e não a partir de uma eventual sensibilidade à retórica manejada pelo autor da demanda. Acolhe-se com isso a sinalização hoje consagrada pela Lei 13.655/2018, à relevância do consequencialismo, quando se cuide da aplicação de normas de Direito Público.
Muito embora a Recomendação CNJ nº 129 de 15/06/2022 em nenhum momento aluda literalmente à atitude judicial deferente para com a escolha empreendida pela administração pública, ao fim e ao cabo é disso que se cogita — ao menos no sentido que esta autora tem já defendido em diversas ocasiões.
Historicamente, a aproximação judicial deferente para com escolhas administrativas tem encontrado resistência, sob a falsa inspiração de que dela pudesse resultar limitação ao controle judicial da administração pública. Rejeitar a deferência para com escolhas administrativas processualmente adequadas se afigurava como reafirmação da amplitude que a doutrina conferiu à garantia constitucional de acesso à justiça. O tempo parece estar demonstrando que a virtude estará no justo meio — não numa adesão servil às escolhas da administração, mas numa investigação voltada à processualidade adequada na sua formulação.
Em texto anterior já sustentei que uma aproximação judicial deferente no ambiente da Constituição de 1988 envolveria três componentes: 1) conhecer os termos da escolha empreendida pela administração; 2) saber se a escolha está sendo implementada nos termos em que foi formulada — e em caso de resposta negativa, quais as razões para tal; e 3) que a crítica empreendida pelo autor da demanda empreendesse a uma dialética para com os fundamentos apresentados pela administração. Por diversas vezes apontei igualmente que o papel do Judiciário em hipóteses que tais não pode compreender a simples substituição da administração Pública em suas escolhas, eis que lhe falta aptidão institucional para tanto. Se isso é verdade em temas ordinários do dia a dia do poder público, com maior razão será no domínio dos projetos de infraestrutura, normalmente revestido de interdisciplinariedade, alto grau de complexidade e significativo impacto econômico.
A Recomendação CNJ nº 129 de 15/06/2022 caminha na mesma direção das proposições que formulei nos textos indicados, recepcionando uma concepção de controle judicial que não rejeita em princípio à aproximação deferente.
A oitiva da administração, determinada pelo artigo 3º, II da Recomendação CNJ nº 129 de 15/6/2022 evidentemente se orienta no sentido de compreender os termos da iniciativa que está sendo objeto de impugnação — seja no que toca ao seu conteúdo original, seja no que se refere ao seu atual estágio de execução. Esse o objetivo pelo qual o órgão responsável pelo projeto é de ser ouvido. Com isso se previne uma apreciação judicial fundada meramente em projeções subjetivas no litígio, do lugar que a administração pública ocupe no imaginário do controlador.
A explicitação ainda de que o que se busca com o ato normativo do CNJ é o combate ao abuso do direito de demandar induz ao alinhamento com a proposição de que o autor é de ser capaz de evidenciar a necessidade da intervenção controladora, à luz das informações que sobre ela foram trazidas pela administração. A demanda há de ser um diálogo entre partes dispostas a empreender à comunicação e ao convencimento — e não a simples enunciação de um juízo inicial de reprovação da escolha pública.
A valorização do procedimento de governança — cujos contornos se pode divisar com base no protocolo constante do Anexo da Recomendação nº 129 de 15/6/2022 — se alinha com a compreensão de que o controle judicial em hipóteses que tais, é voltado especialmente à processualidade adequada, não comportando como regra, atuação judicial sucedânea daquela da administração. Mais do que isso, os parâmetros, ainda que genéricos, indicados no
multi referido Anexo, buscam oferecer base objetiva para a decisão judicial.
O cenário de programas de infraestrutura é propício ao reconhecimento de que o que seja de se exigir da administração é uma escolha pública adequadamente formulada, seja no que toca aos elementos de instrução, aos agentes envolvidos e à indispensável transparência. Com isso não se estará, em absoluto, apequenando ao controle — ao contrário, o que se tem é sua ampliação, eis que se juridiciza, na lição de Moreira Neto, a relevância das providências assecuratórias do resultado. Situado no domínio da incerteza, ante a complexidade e o alongado perfil temporal que é próprio das iniciativas de infraestrutura, o juiz-controlador buscará na qualificação do processo de escolha, a garantia maior do resultado desejado, reverenciando assim ao princípio da eficiência na sua orientação não só à otimização dos meios, mas ainda "quanto a qualidade do agir final".
Paulatinamente, o tema da deferência para com as escolhas administrativas vem se apresentando na arena de debates com o Judiciário — e disso são ilustrações significativas, a anterior Recomendação CNJ nº 66 de 13/5/2020, que aludia expressamente à deferência para com as opções empreendidas pelo gestor do SUS no período de pandemia; e o uso recorrente pelo STF do argumento de capacidade institucional, como fundamento para o respeito a ações públicas censuradas em juízo. Com isso tem-se a oportuna sinalização de valorização da decisão administrativa processualmente adequada. Não é de se desconsiderar o elemento indutor que essa nova atitude judicial pode ter em favor da requalificação dessas mesmas opções estratégicas.
É bom que seja assim. Indispensável reviver na memória que o papel principal do Judiciário, ainda que em sede de controle da administração pública, não é substituir-se a ela, ou comprazer-se com um juízo de censura. A missão do Judiciário, quando no exercício do controle do poder, é reconduzi-lo à sua trilha ordinária de funcionamento segundo o querer da Constituição — e nesses termos, valorizar a opção administrativa bem formulada é cumprir estritamente este mister.
Fonte: Conjur