Reflexos da guerra na contratação pública
O mundo assiste à guerra na Ucrânia — trata-se de uma ação militar de causas relativamente conhecidas e de consequências imprevisíveis, aparecendo como certezas apenas o triste sacrifício de vidas e a ameaça permanente à paz.
O cenário, é claro, traz preocupações e ansiedade em diferentes graus — ainda assim, alguns têm tempo e disposição para o inusitado: em uma conta falsa no Twitter, atribuído a uma prefeitura, foi postado a seguinte suposta informação:
"devido à guerra da Ucrânia, a Central de Atendimento da Prefeitura por telefone estará indisponível até 4/3".
A despeito de maiores considerações sobre esta postagem, resolvi centrar atenção nos reflexos causados pela
guerra — ou pelas
guerras — no ciclo da contratação pública.
Nossa Constituição atribui ao presidente da República competência para "declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional" (artigo 84, XIX). Imagina-se que a declaração de guerra seja acompanhada da decretação de estado de sítio (artigo 137, II), cabendo ao decreto respectivo indicar as normas necessárias à sua execução (artigo 138) e podendo abranger, em tese, normas relativas às contratações públicas.
Nos termos do artigo 75, VII da Lei nº 14.133/21, as situações guerra, estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal foram reconhecidas como graves o suficiente para permitirem a contratação direta com dispensa de licitação. É razoável entender que a regra admite somente contratações ligadas à proteção dos bens jurídicos ameaçados, ao esforço de guerra e ao retorno à normalidade, sendo exigida relação direta com a situação que ensejou a decretação das medidas.
Mudando a análise para o cenário geopolítico atual, cabe perguntar:
há possibilidade de dispensa de licitação para compras, locações, prestação de serviços, alienações e celebração de outros contratos administrativos por dispensa de licitação em razão da guerra na Ucrânia? A hipótese constante do artigo 75, inciso VII abrange guerra que envolva diretamente o país, não havendo cabimento em admitir sua utilização diante de conflitos envolvendo outros estados. Entretanto, no campo teórico, é possível admitir que a realização de guerra em outro território e envolvendo somente outros Estados possa configurar situação que se enquadre em outra hipótese de contratação direta.
Imaginemos, por exemplo, que a evolução dos fatos envolva o Brasil de tal forma que seja necessária contratação que possa acarretar comprometimento da segurança nacional (artigo 75, VI), ou então, por exemplo, que a União tenha que intervir no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento em razão do cenário internacional (artigo 75, X). Nessas situações
exemplificativas, a ligação do estado de guerra com a configuração da hipótese normativa e a relevância da contratação para a situação específica deverão ser devidamente motivadas. Guerras costumam causar efeitos diretos no mercado, e não deve ser descartada a possibilidade de escassez de algum material ou produto ou mesmo anômala flutuação nos preços que imponha atuação diferenciada da Administração Pública na condução de suas contratações.
A guerra externa sem envolvimento direto do país pode ter reflexos também na execução contratual. Com efeito, é necessária a realização de alteração contratual "para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato" (artigo 124, II, "d"). Por outro lado, o atraso superior a dois meses por parte da Administração nos pagamentos devidos autoriza o contratado a suspender o cumprimento das obrigações assumidas ou a pleitear a rescisão do contrato, salvo nos casos de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou de guerra (artigo 137, § 2º, IV combinado com o § 3º, I e II do mesmo artigo).
Retomando a ação de
desinformação postada na rede social, importante atentar não só para a necessidade de coibir absurdos jurídicos como também de motivar, consistentemente, as situações excepcionais ligadas às contratações públicas. Felizmente, é preciso relembrar que nossa República obedece, nas suas relações internacionais, ao princípio da solução pacífica dos conflitos (artigo 4º, VII).
O desmentido foi publicado pelo município de Serra da Saudade (MG), no Facebook, a única rede social utilizada pelo município: https://www.facebook.com/serradasaudade.mg.gov.br/photos/a.314541312036280/2142704425886617/
Joel Niebuhr anota ao comentar o artigo 24, III da Lei nº 8.666/93: "Convém ponderar que a dispensa só vale para as situações afetadas ou cuja satisfação do interesse público fosse comprometida pelo estado de beligerância. É de presumir que boa parte dos contratos estará sujeito à dispensa, mesmo em razão das alterações provocadas no mercado. [...] também não se esqueça que a discricionariedade existente no plano da norma pode se dissipar no plano dos fatos, o que vem acontecer nas situações em que a realização de licitação pública, mesmo em estado de guerra, não comprometeria o interesse público. Em síntese, deve haver nexo de causalidade entre a dispensa e o estado de guerra. Nem todos os contratos devem ser firmados mediante dispensa: apenas os afetados pelo estado de guerra, cuja realização da licitação pública daria azo ao perecimento de interesse público" (NIBUHR, Joel. Dispensa e inexigibilidade de licitação pública. 4.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 259)
Fonte: Conjur