Sanções aos membros da Defensoria e preservação dos objetivos institucionais

Imaginemos os seguintes cenários: 1 – Defensora Pública que atua na qualidade de curadora especial de crianças em juízo com competência para causas do Estatuto da Criança e do Adolescente comete maus tratos ao seu filho menor e é responsabilizada criminalmente; 2– Defensor Público comete crime contra sua esposa no contexto de violência doméstica e, sendo submetido a apuração criminal, exerce suas atribuições em Juizado de Violência Doméstica em prol das vítimas.

Nos exemplos citados, a existência de processos judiciais para atribuição de responsabilidade autorizaria a Defensoria Pública a aplicar punições ou quaisquer tipos de restrições funcionais a esses membros, quando seus atos mantivessem relação com as funções desempenhadas?

É dizer, a prática de determinados comportamentos ilícitos descredencia o membro da Defensoria Pública a exercer suas funções institucionais, obrigando a Defensoria Pública a removê-lo por interesse público ou aplicar sanção disciplinar, inclusive de demissão por incompatibilidade de atos, quando prevista em lei?

Apesar de a matéria ser omissa na lei nacional, diversas são as leis orgânicas estaduais que atribuem aos membros da Defensoria Pública o dever de “manter irrepreensível conduta na vida pública e privada” ou “manter conduta compatível com relevância da função”, a exemplo de: Amazonas (art. 89, XI), Amapá (art. 109, V), Bahia (art. 187, II), Ceará (arts. 98, I e 115, IX), Espírito Santo (art. 41, IX), Goiás (art. 158, X), Maranhão (art. 42, II), Mato Grosso (art. 109, I), Mato Grosso do Sul (art. 137, I), Minas Gerais (art. 79, III), Pará (art. 62, IX), Paraíba (art. 156, IX e XXIII), Paraná (art. 176 – irrepreensível procedimento na vida pública), Rio de Janeiro (art. 129), Rondônia (art. 70, XII), São Paulo (art. 164, XI) e Sergipe (art. 92).

Dentre esses Estados, algumas normas consideram que a prática de infrações penais incompatíveis com as funções da Defensoria Pública pode acarretar a aplicação da pena de demissão, enquanto outras normas punem seus membros com penalidades de suspensão ou censura para a prática de atos incompatíveis com a dignidade ou decoro do cargo ou quando houver procedimento reprovável.

Em qualquer caso, o trânsito em julgado se torna indispensável, tendo em vista a garantia constitucional da presunção inocência, dogma defendido pela instituição no exercício de sua atividade fim, também oponível quando tratar dos seus pares na atividade meio.

Apesar de não haver um Código de Ética dos membros da Defensoria Pública, com força cogente, o Conselho Nacional de Corregedores Gerais já editou documento com essa finalidade, dispondo seu art. 9º, IX que os Defensores Públicos devem manter “boa conduta e decoro”; além disso o art. 11, II considera ato atentatório ao decoro do cargo a “prática de ofensas físicas ou morais em locais públicos ou privados”. No entanto, nem todas as instituições foram capazes de incorporar esse conteúdo à sua normativa interna, por total desconhecimento ou desídia.

Fora do âmbito da Defensoria Pública, o tema também é rigoroso. Para as carreiras policiais a nível federal, o art. 9º, V da Lei n. 4.878/1965 exige “procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável, avaliados segundo normas baixadas pela Direção Geral do Departamento de Polícia Federal” como requisito para ingresso no cargo.

De acordo com a normativa da Polícia Federal, são atos que afetam o procedimento irrepreensível e a idoneidade moral esperada do candidato: i - pra?tica de ato tipificado como crime, incompati?vel com o exerci?cio de cargo policial;

ii - pra?tica de ato de viole?ncia fi?sica ou agressa?o moral; iii - pra?tica de ato atentato?rio a? moral e aos bons costumes; iv - existe?ncia de sentenc?a penal condenato?ria transitada em julgado; v - habitualidade em descumprir obrigac?o?es legi?timas.


No âmbito do Ministério Público, igual fórmula é encontrada no art. 43, I da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), quando estabelece como dever institucional a manutenção da “ilibada conduta pública e particular”.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC n. 36/1979) não foge a essa regra quando prevê em seu art. 35, VIII o dever dos magistrados de “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.

Fora do universo da Defensoria Pública e analisando exemplos práticos, podemos destacar recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que afastou magistrado em sede de procedimento administrativo disciplinar, em virtude de deboches à Lei Maria da Penha proferidos durante audiências em Vara de Família. Antes da instauração do procedimento correspondente o tribunal já havia transferido o magistrado do juízo de família para órgão com competência fazendária1.

No âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil também vem se construindo a tese de óbice à inscrição e até mesmo a exclusão2 dos quadros, por falta de idoneidade moral, a condenados por crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar:

CONSELHO PLENO DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, no uso das atribuições que lhe são conferidas nos arts. 75, parágrafo único, e 86 do Regulamento Geral da Lei nº 8.906/94, considerando o julgamento da Proposição n. 49.0000.2019.002283-2/COP, decidiu, na Sessão Ordinária realizada no dia 18 de março de 2019, editar a Súmula n. 09/2019/COP, com o seguinte enunciado: INIDONEIDADE MORAL. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ANÁLISE DO CONSELHO SECCIONAL DA OAB. Requisitos para a inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Inidoneidade moral. A prática de violência contra a mulher, assim definida na “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – ‘Convenção de Belém do Pará’ (1994)”, constitui fator apto a demonstrar a ausência de idoneidade moral para a inscrição de bacharel em Direito nos quadros da OAB, independente da instância criminal, assegurado ao Conselho Seccional a análise de cada caso concreto.



A Súmula da OAB possui tratamento mais rigoroso, já que obsta o ingresso de bacharel mesmo que ainda não ostente condenação transitada em julgado e também não estabelece um marco temporal pelo qual a restrição é imposta. Note-se que o enunciado ainda faculta ao Conselho Seccional a “análise de cada caso concreto”, ampliando uma margem de subjetividade que certamente trará maior controvérsia ao escopo pretendido.

A nível jurisprudencial trago em destaque o julgamento monocrático do Recurso Extraordinário 1.308.883/SP, de relatoria do Min. Edson Fachin, que reconheceu constitucional a norma municipal que veda a nomeac?a?o, pela administrac?a?o pu?blica direta e indireta do Município de Valinhos, de pessoas condenadas por infrações no contexto da Lei Maria da Penha, ao argumento de adequação ao princípio da moralidade, constante do art. 37 da CRFB. Importante esclarecer que a referida lei estadual estabeleceu como marco temporal o cumprimento da pena, conforme se observa de seu art. 1º, parágrafo único3.

Alguns regulamentos de concursos públicos para ingresso na carreira da Defensoria Pública já consideram como requisito para o cargo “não apresentar antecedentes criminais incompatíveis com o exercício da função, na forma da lei”, como é o caso do edital recém-publicado pela instituição baiana.

Nota-se, portanto, que a idoneidade moral para ingresso em carreiras jurídicas começa a sofrer verdadeira ressignificação, indicando-se uma possível tendência de objeção ao ingresso de candidatos que possuam máculas em seu histórico criminal, notadamente quando as infrações dizem respeito a certos bens jurídicos, como é o caso da violência doméstica e familiar.

Há, no entanto, um perigo nesse movimento. Ao se lançar um subjetivismo na análise da “idoneidade moral”, cria-se o risco de se obstar o ingresso na carreira de pessoas que estejam reabilitadas e que efetivamente possam, a partir da experiência pretérita, reforçar a importância de se evitar determinados comportamentos antijurídicos.

Os regulamentos se utilizam de expressões extremamente abertas, criando espaços e oportunidades interpretativas que possam criar um ambiente de diversidade de tratamentos jurídicos.

Quantos ex-apenados hoje são referências literárias e expositivas sobre a importância de se evitar o cometimento de delitos, tornando-se verdadeiros ativistas em prol de destas causas.

Não vejo com bons olhos a vedação ao acesso aos cargos públicos de pessoas que ostentem condenações, sem que se estabeleça um marco temporal (cumprimento da pena, retorno à condição de primário ou reabilitação). Esta omissão certamente implica em eternizar os efeitos da condenação criminal, contrariando o preceito constitucional de vedação à pena perpétua (art. 5º, XLVII, b) ou deixa ao arbítrio de comissões, uma avaliação que não pode ter caráter predominantemente subjetivo, principalmente ao arrepio de balizas mínimas de transparência e segurança jurídica.

Outro problema que também precisa ser melhor debatido e regulamentado diz respeito ao tratamento disciplinar àqueles que já integram as carreiras jurídicas e praticam infrações penais contrárias aos objetivos ou funções institucionais.

Partindo da perspectiva da Defensoria Pública, creio que nos casos em que a conduta praticada pelo membro na seara criminal não acarrete a perda do cargo ou que o ilícito praticado não tenha o condão de lhe gerar sanção disciplinar, a instituição deva ter cautela na adoção de medidas tendentes a limitar as atribuições por conta do conflito de funções e objetivos institucionais.

Há, portanto, três estágios distintos a serem observados. O primeiro relativo à responsabilização penal de membro da instituição (perda do cargo na forma do art. 92 do Código Penal); o segundo concernente ao resíduo disciplinar (aplicação de sanção administrativa em virtude da prática de ato considerado por lei como crime ou que descaracterize a irrepreensível conduta); e o terceiro, mais brando, concernente ao afastamento do exercício de determinada atribuição – que não se confunde com a suspensão das funções (quando o ato praticado não seja punido a nível criminal ou disciplinar, mas ainda ostente reprovabilidade incompatível com o exercício da função).

Dentre os objetivos precípuos capitaneados pela instituição em sua atividade fim, temos a resistência ao punitivismo exacerbado e a baixa qualidade de standard probatório exigido nos processos criminais da justiça brasileira, como dogmas a serem superados.

Do ponto de vista normativo, há também a primazia do Estado Democrático de Direito e a garantia da ampla defesa e do contraditório, previstos no art. 3º-A da LC n. 80/94. Estes dois últimos objetivos seriam o alicerce para a revisão da postura de Defensoras e Defensores Públicos que transgredissem normas penais do ordenamento jurídico.

Seria então necessário oportunizar um espaço de ampla defesa e contraditório para a Defensora Pública demonstrar, por exemplo, sua aptidão para a defesa de crianças, ainda que condenada por maus tratos ou o Defensor Público indicar sua capacidade para a defesa das mulheres vítimas de violência, ainda que condenado por infração semelhante.

De outro lado, também o art. 3º-A da LC n. 80/94 quando preconiza como objetivos institucionais a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a primazia da dignidade da pessoa humana, buscaria evitar que comportamentos transgressores fossem reproduzidos no plano interno das funções institucionais, estimulando a instituição a ter um olhar específico a esses membros.

Assim, retornando à perspectiva do terceiro estágio antes mencionado (afastamento do exercício de atribuição sem suspensão das funções), creio que a imposição de um afastamento temporário ou de remoção por interesse público pautados na prática de infrações penais com reflexos administrativos que atinjam as funções e objetivos institucionais devam observar os ditames da ampla defesa e do contraditório, nos termos do art. 134, §4º c/c 93, VIII da CRFB.

Mais do que isso, a Defensoria Pública enquanto instituição apta a prestar atendimento interdisciplinar, na forma do art. 4º, IV da LC n. 80/94, deve ser capaz de fornecer suporte e acompanhamento (psicológico, por exemplo) a esses membros da Defensoria Pública, principalmente para analisar até que ponto estão incapacitados para exercer suas funções em certos espaços temáticos e buscar a sua correção, em detrimento do “exílio institucional”.

Naqueles casos em que o membro efetivamente deseje permanecer em sua titularidade, a instituição não deverá reproduzir um quadro punitivista, mas procurar recapacitar esse membro, a fim de que as práticas e preceitos por ele empregados no exercício da atividade fim também sejam reproduzidas em sua vida privada.

Essa capacitação contará com a participação em grupos reflexivos, a iniciativa do próprio membro em demonstrar que compreende a ilicitude de sua conduta, o arrependimento e a importância da sua não reprodução, além da atuação com auxílio de outros membros que possam dar suporte nesse momento de adaptação e coordenar as atividades.

Nos casos em que fique demonstrado o desapreço do membro aos objetivos preconizados pela instituição, através de comportamentos públicos e particulares, a via excepcional da remoção por interesse público será adotada, de modo que a instituição não permita a reprodução de atos de “violência institucional”, sempre, é claro, assegurado o devido procedimento legal.

De qualquer forma, entendo que seja para o ingresso na carreira, seja para a continuidade do exercício das funções, devem as instituições normatizar com transparência e objetividade os critérios aqui enfrentados.

Fonte: Conjur

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