Seis meses da emenda emergencial revelam engodo fiscal brasileiro
Um teto sem piso não se sustenta, por lhe faltar viabilidade estrutural. Não obstante isso, a realidade fiscal brasileira está presa à paradoxal pretensão de que seja quebrado o piso da proteção social para manter artificialmente o teto de despesas primárias em ruínas.
Desde sua instituição pela Emenda 95/2016, o Novo Regime Fiscal restringiu o custeio dos mais diversos direitos sociais, do que dá prova a colossal fila de espera do programa Bolsa Família.
Supostamente a pretexto de explicitar conflitos distributivos, o teto somente fixou limite para as despesas primárias, sem nada fazer para corrigir a regressiva matriz tributária do país ou impor balizas mínimas para a gestão das despesas financeiras.
Quase cinco anos se passaram e pouco mudou em relação à dura realidade do orçamento de castas brasileiro. Enquanto negamos, por exemplo, custeio suficiente ao censo decenal (em rota de descumprimento da decisão do STF nos autos da ACO 3508
[1]), benefícios a militares serão ampliados em cerca de R$27,7 bilhões até 2022.
Todos os arremedos de intervenção normativa feitos para manter as aparências de uma falsa tese de intocabilidade do teto não passam de engodo e o tempo tem sido implacável em desnudar tal cinismo fiscal. Aliás, tanto o teto é mutável, como ele já foi alterado no rol das suas exceções pelas Emendas 102/2019 e 108/2020.
Atualmente o teto tem sido furado recorrente e falseadamente por créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis. Assim, seguimos com esse jogo de faz-de-conta de que o teto está intocado para enganar incautos defensores da agenda de austeridade como
"âncora fiscal". Não nos parece, porém, ser ingenuidade dos analistas do mercado financeiro. Isso porque tal cenário aproveita aos cínicos chantagistas em busca da majoração dos seus lucros privados, via privatizações de afogadilho, majoração veloz de juros mesmo em face do alto nível de desemprego, manutenção de incentivos fiscais e creditícios ou ainda
"reformas" pouco debatidas com a sociedade.
Há quem venha a público mensurar até qual ponto o mercado aceitaria estouro do teto no próximo exercício financeiro, como feito recentemente por Mansueto Almeida em relação ao impasse dos precatórios no PLOA-2022.
Enquanto o custeio dos direitos fundamentais é preterido, emendas parlamentares são ampliadas, na maioria das vezes, de forma errática, opaca e alheia ao planejamento setorial das políticas públicas. O teto não aprimorou a qualidade do gasto público, apenas acirrou sesmarias fiscais, frustrando soluções coletivas para ampliar a margem de capturas privadas (feudos orçamentários
).
Marcos Mendes, um dos mentores do teto, reconhece o impasse das emendas parlamentares no bojo do orçamento federal, na medida em que:
"A real motivação das emendas é colocar dinheiro público na mão dos congressistas, conferindo-lhes vantagem competitiva nas eleições em relação àqueles que não têm mandato. Viciam a competição eleitoral em favor de caciques que perpetuam suas dinastias no poder local.
Elas geram gasto de baixa qualidade, com pulverização de recursos em despesas miúdas, que deveriam ser usados em ações típicas da União.
Podem facilmente descambar para a corrupção. Sempre é bom lembrar os eventos do passado, que mostraram à sociedade o barro com o qual são esculpidas as emendas."
É inegável o mal-estar das regras fiscais brasileiras. Precisamos ler o cenário em sua perspectiva sistêmica, assim como devemos interpretá-las à luz do texto permanente da Constituição, porque o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tem se comportado como uma espécie de
"Retrato de Dorian Gray" das nossas finanças públicas.
O mais recente engodo foi a Emenda 109/2021, que chegou a seis meses de vigência no dia 15/9, quando deveria culminar com a entrega de plano de revisão das renúncias fiscais, constante do seu artigo 4º para reduzir seu montante total a 2% do PIB até 2029 (em tese, deveria haver redução de cerca de R$150 bilhões em tais benefícios tributários).
Infelizmente, contudo, o plano enviado pelo Executivo não passou de risível proposta de ajuste nos gastos tributários, como bem definido por Adriana Fernandes:
"O governo tratou praticamente como confidencial o plano gradual de corte de renúncias fiscais encaminhado ao Congresso como exigência da famosa PEC Emergencial, proposta que a equipe econômica classificou como medida "revolucionária" para as contas públicas.
O prazo para o envio terminou esta semana, o plano foi enviado a tempo, mas o Planalto e a Economia não quiseram divulgar o seu conteúdo e muito menos justificar as escolhas.
Estranho, né? Repete-se o que já aconteceu quando o governo enviou um plano ao Congresso para atender dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2019, mas pediu sigilo e nada aconteceu.
Na moita, o governo também protocolou na Câmara um projeto que revoga os benefícios para atender o plano traçado. Batizada de 'gradual' a proposta não passou de uma medíocre carta de intenções de redução (até 2029) de R$22,41 bilhões, dos R$308 bilhões. Isso mesmo: menos de R$3 bilhões por ano. A montanha pariu um rato."
Noutra linha de sentido, a Emenda Emergencial serviu de argumento extorsivo para barganhar pela aprovação de gatilhos fiscais enquanto esteve suspenso o auxílio emergencial no primeiro trimestre deste ano. Vale lembrarmos que seu artigo 3º chegou a fixar um subteto de R$44 bilhões tão francamente controverso, que já foi ignorado e descumprido pelo próprio Ministério da Economia.
A propósito, o inconstitucional abuso no manejo de créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis prova que a Constituição de 1988 tem sido tratada como uma espécie de LDO semestral.
A verdade é que vivemos sob um arcabouço constitucional ainda mais instável e suscetível a alterações paroquiais desde a Emenda 95/2016. O teto literalmente implodiu a viabilidade de pactuações democráticas no bojo das leis do ciclo orçamentário e acirrou diretamente no texto constitucional nossa incapacidade de ordenação legítima de prioridades alocativas.
Para 2022, há considerável risco de o Executivo federal voltar a manejar indevidamente créditos extraordinários para cobrir despesas previsíveis, haja vista, por exemplo, a insubsistência no PLOA das dotações relativas às vacinas e ao programa Bolsa Família.
Muitos são os engodos que tentam apenas postergar o enfrentamento da desigualdade escravocrata em que se assenta a realidade político-econômica do país. É oportuno, por sinal, denunciarmos, mais uma vez, o risco de calotes bilionários no custeio da educação básica obrigatória. Ora, hipocrisia é palavra insuficiente para resumir as propostas de postergar precatórios, sobretudo os relativos ao extinto Fundef (que são, por força do artigo 60 do ADCT excetuados do teto na parte final do inciso I do §6º do artigo 107 do ADCT), bem como de acatar déficit de aplicação em educação de Estados e Municípios durante a pandemia, tal como pretendem, respectivamente, as PEC’s 23 e 13, ambas de 2021.
Recente relatório da OCDE apontou que o
"Brasil tem um dos mais baixos investimentos em educação: US$ 3.250 por aluno ao ano contra mais de US$ 10 mil na média dos 38 países da organização. E que não houve aumento de recursos em 2020, mesmo com as dificuldades impostas pela pandemia", como noticiado aqui.
Vivemos sob um teto vintenário já fadigado em seu primeiro quinquênio. Mas o pior não é isso. Enquanto estivermos aprisionados ao falso tabu acerca da sua imutabilidade e à defesa passional da sua persistência, o teto em ruínas tende a desmoralizar as regras fiscais brasileiras, erodindo consigo todo o nosso arcabouço constitucional.
Esquecem-se os cultores dessa procissão de fé que sacrifícios seletivos não expiam o pecado original da baixa aderência do executado em relação ao planejado na condução das políticas públicas no Brasil. A Emenda 109/2021 provou ser engodo ignorar as mazelas do teto, até porque sociedade que não planeja aceita qualquer resultado.
Infelizmente, contudo, o resultado que temos experimentado desde a Emenda 95/2016 é o de ainda maior captura fisiológica do ciclo orçamentário, ao custo da igualmente maior vulnerabilidade das condições de vida da população brasileira.
Fonte: Conjur