Tolerância e diálogo no tratamento jurídico das famílias superendividadas
Em meados dos anos noventa Norberto Bobbio escreveu em um de seus textos que "
não há democracia sem costume democrático". Em outros termos, pode-se dizer que a democracia, enquanto regime político e fundamento jurídico de um Estado (o
Democrático de Direito), necessita, para sua plena efetividade, de uma
vivência democrática construída a partir de determinados valores e traduzida em virtudes como as da tolerância e do diálogo respeitoso com pessoas e grupos dotados de ideias e identidades diferentes.
Pois esses valores, no mundo da vivência democrática, deveriam ser indisponíveis e inegociáveis, como expressa a famosa frase supostamente atribuída a Voltaire:
"Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". E caberia ainda mencionar que são valores necessários à convivência das pessoas em espaços (e pelos interesses) públicos e privados, pois
"[...] costume democrático significa ser honesto no exercício dos próprios negócios, leal nas trocas (e isto é válido também nas relações de mercado), respeitar a si e aos outros, estar consciente das obrigações, não somente jurídicas, mas também morais, que cada um de nós tem para com o próximo, da mesma forma como não se deve nunca cansar de repetir em um país, no qual é fraco o sentido da moral e ainda mais fraco o jurídico; enfim, saber distinguir e não confundir interesses privados e públicos".Do plano das ideias para a atual realidade brasileira encontramos um cenário desafiador à realização do costume democrático de Bobbio. Passados mais de 30 anos do retorno à democracia, a sociedade brasileira reproduz, no campo político, a intolerância e a incapacidade do diálogo respeitoso entre grupos politicamente opostos, como demonstrou recente pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva
, que constatou o seguinte dado: sete entre dez brasileiros com opiniões políticas divergentes não conseguem dialogar sobre suas escolhas e intenções de voto nas eleições de 2022. É o retrato de uma sociedade ideologicamente polarizada e esquizofrênica, incapaz de conviver pacificamente com o diferente e que enxerga no adversário político um inimigo. Assim, as redes sociais transformam-se em "arenas de batalha" onde proliferam os discursos de ódio e se mata (virtual e até fisicamente) uma pessoa por expressar posição política diversa. Por fim, as questões de interesse público são cada vez mais capturadas por interesses privados de grupos políticos, seja para a satisfação de suas pretensões políticas e econômicas ou ainda de terceiros, como demonstra a existência (por si só absurda!) de um "orçamento secreto" por meio de emendas parlamentares pagas com o dinheiro público e sem a devida transparência quanto ao destino dos recursos.
Mas em todo esse cenário desolador parece haver um fio de esperança ao costume democrático e ele passa pelo campo privado, pelas relações sociais de natureza privada. É que na percepção de um "realista esperançoso", como diria Ariano Suassuna, devemos lembrar que o costume democrático
"é válido também nas relações de mercado" e, neste sentido, a recente atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de prevenção e tratamento dos consumidores (ou podemos dizer, das famílias!) superendividados abre uma possibilidade enorme à prática da tolerância e do diálogo no contexto das relações de consumo.
No campo jurídico sabemos que a proteção dos consumidores enquanto direito/garantia fundamental (CF, artigo 5º, XXXII) — e tendo o CDC como uma condição de plena eficácia deste direito/garantia fundamental — vincula-se de modo permanente ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III), de modo que podemos compreendê-los, ao menos do ponto de vista axiológico, como enunciados de uma única norma jurídica. Assim, violar o CDC é violar o direito/garantia e, por conseguinte, o próprio princípio fundamental da dignidade humana. E neste mesmo campo jurídico é consenso que não há nada mais atentatório à democracia, além do desrespeito à harmonia dos Poderes, do que a violação dos direitos fundamentais e do princípio fundamental da dignidade humana.
Portanto, a percepção é a de que se abre, pelo Direito do Consumidor, uma possibilidade de colocar a pessoa humana superendividada diante de seus credores para que assumam uma primeira postura de diálogo e tolerância visando a conciliação e o acordo a partir de um compromisso (plano) de pagamento apresentado pelo consumidor superendividado (CDC, artigo 104-A). Em síntese: uma harmonização de interesses (CDC, artigo 4º, III) que são legítimos e aparentemente antagônicos, pois o fornecedor credor, especialmente o pequeno e o médio, não receberá o crédito a que tem direito, mas poderá receber aquilo que o consumidor se comprometer, em seu plano de pagamento, a adimplir. Neste sentido, o diálogo e a tolerância permitirão a conciliação e o fornecedor perceberá que a decisão de conciliar será vantajosa também para ele, na medida em que trará de volta ao mercado o consumidor e sua família agora em processo de recuperação da ruína econômica.
Contudo, sejamos realistas, ainda que esperançosos: será muito difícil empregar o mesmo raciocínio nas relações com os grandes fornecedores, sobretudo certos fornecedores do sistema financeiro, cuja lógica econômica, já apontada em estudos realizados no Brasil, é a de conceder crédito a quem não pode pagar, buscando manter cativo o consumidor devedor, em verdadeira escravidão econômica. A esses fornecedores, em princípio, não será fecunda a tentativa de repactuação de dívidas por conciliação, cabendo ao consumidor, para satisfação do seu direito ao tratamento jurídico enquanto superendividado e preservação do seu mínimo existencial (CDC, artigo 6º, XI e XII), o ajuizamento da ação compulsória para renegociação (CDC, artigo 104-B), fundada na boa-fé e no dever de renegociar em correlação com os novos direitos básicos para os consumidores superendividados.
Como irá funcionar esse novo regime jurídico de prevenção e tratamento dos consumidores (e das famílias) superenvididados só o tempo irá dizer, inclusive pelas ameaças a sua plena efetividade no campo legislativo . Contudo, é certo que ele possibilitará realizar, no campo jurídico, algo que as pessoas não têm conseguido realizar em grande parte de suas relações sociais, marcadas pela polarização política e pelo extremo individualismo. Enfim, trata-se de uma aposta no Direito do Consumidor como elemento propulsor do costume democrático tão ausente em nossa atual sociedade brasileira, marcada pela falta de tolerância e de diálogo. Nas relações de consumo envolvendo famílias superendividadas, o novo regime jurídico trazido pela Lei 14.181/2021 permitirá o resgate econômico dessas famílias, situação que trará benefícios ao mercado de consumo como um todo, inclusive para os grandes fornecedores.
Fonte: Conjur