Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility
A responsabilidade civil decorrente do fato jurídico da construção é fracionada em dois grandes setores: a responsabilidade contratual na incorporação e a responsabilidade pelos vícios construtivos. Enquanto a responsabilidade na incorporação — Lei nº 4.591/64, atualizada pela Lei nº 13.786/18 — prioriza a conservação do negócio jurídico de incorporação e a sua função social perante a comunidade de adquirentes, a responsabilidade civil pelo fato jurídico da construção é materializada pela disciplina dos vícios construtivos, normatizada em preceitos difusamente localizados no CC e no CDC. Os vícios construtivos se afeiçoam à rescisão contratual, como forma de desconstituição do negócio jurídico por vícios objetivos na edificação, anteriores à entrega da obra. Vícios construtivos são anomalias que afetam o desempenho da obra, tornando-a inadequada aos seus fins.
O construtor é fornecedor quando edifica unidades imobiliárias, assumindo obrigação de fazer (serviço), seja por empreitada ou administração, bem como obrigação de dar coisa certa (produto) quando vende as ditas unidades para alguém que se coloca como consumidor, destinatário final do imóvel para si e/ou sua família, fechando a cadeia produtiva. É no momento da entrega da obra que principia a parte mais relevante de sua responsabilidade: a responsabilidade pela qualidade e segurança da obra diante de eventual quebra de comutatividade obrigacional decorrente de desconformidade qualitativa do bem à oferta/publicidade, que objetivamente afeta a utilidade do imóvel e o seu valor.
O incorporador não pode se alforriar perante o condômino (no caso de vício na unidade) ou o próprio condomínio (vício nas áreas comuns) sob alegação de que empreitou as obras a um construtor, que seria o responsável pelo defeito, que por sua vez aduziria não ter contratado com aqueles, mas apenas com o incorporador. O artigo 32 da Lei nº 4.591/64 enuncia a obrigação do incorporador que, embora não tenha efetuado a construção, concretizou a venda de frações ideais de terrenos e a entrega do prédio de acordo com o projeto e memorial descritivo. Na qualidade de contratante inadimplente, impulsionador e principal garantidor do empreendimento, responde o incorporador pela vulneração da garantia de solidez e segurança perante adquirentes de unidades e o condomínio, em solidariedade passiva com o construtor que lhe substitui na execução da obra (artigo 942, CC), uma espécie de terceiro cúmplice na execução do contrato.
Em matéria de vícios de qualidade ou de quantidade do produto ou serviço, o CDC discrepa do CC. Primeiramente, não há na Lei nº 8.078/90 prazo fixo específico de garantia em relação à solidez e segurança de edifícios. Assim, possui o consumidor proteção mais abrangente quanto à baixa qualidade dos materiais empregados ou a má técnica aplicada na edificação. No que tange aos vícios aparentes, o sistema do CDC se afasta do CC no qual a responsabilidade do empreiteiro cessa no momento do recebimento (artigo 616, CC). O consumidor deve exigir a reparação no prazo de 90 dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva da obra, não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual (artigo 50, CDC).
Lado outro, relativamente aos vícios ocultos na obra, estará o adquirente resguardado ainda que estes surjam após o lustro do recebimento, mesmo que o vício só se manifeste após o término do prazo de garantia contratual. A garantia certificada é meramente uma liberalidade do incorporador, materializada em prazos mínimos em que a experiência demonstra que não haverá deterioração dos produtos utilizados na construção. O desiderato é o de "cativar" o adquirente para um contrato de longa duração, acautelando-o em face de ocorrências que discrepem do desgaste natural da construção.
Todavia, se em sua dupla acessão, o vocábulo "cativo" remete ao verbo cativar, seduzir, também pode ser compreendido o "cativo" como aquele ser aprisionado, seja um consumidor a um contrato "cativo" de longa duração, seja o fornecedor a uma garantia
ad eternum. Em ambos os casos as amarras devem ser soltas, ensejando-se ao consumidor a liberdade de se desvincular de um negócio jurídico cuja finalidade se frustrou por um vício construtivo que frustrou sua legítima expectativa, como também para o fornecedor que, ao contrário do dito de Saint-Exupéry,
"não se torna eternamente responsável por aquele consumidor que cativa".
Em princípio, a literalidade do §3° do artigo 26 do CDC situa o limiar do prazo decadencial de 90 dias, no momento
"em que ficar evidenciado o defeito". Em princípio, a abertura da norma aponta para uma indiscriminada margem de liberdade do adquirente para a qualquer tempo, sendo suficiente que interpele extrajudicialmente o fornecedor, preferencialmente com um laudo que indique o vício construtivo, de forma a interromper a fluência do prazo legal até que o construtor/incorporador informe a sua posição sobre a reclamação. Nada obstante, a liberdade do consumidor deve se adequar à sua responsabilidade, ou seja, a uma conduta diligente que se amolde a um
standard normativo de um "bom consumidor".
Vale dizer, os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais acautelam o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, consistindo em um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto, existente desde sempre, mas que somente vem a se manifestar depois de expirada a garantia. Ou seja, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um vício de inadequação (artigo 18 do CDC), evidencia a frustração do fim do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo, expectativa violada com o perecimento ou a danificação de bem durável, de forma prematura, causada por vício de fabricação. Nessa categoria de vício intrínseco, certamente se inserem os vícios de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, todavia não decorrem diretamente da fruição do bem, e, sim, de uma característica oculta que esteve latente até então.
Assim, deve ser observado como limite temporal para o surgimento do vício construtivo o critério de vida útil do bem, ou seja, o seu prazo normal de durabilidade, no caso a "razoável durabilidade do prédio". Em um primeiro nível de tutela, em qualquer momento em que ficar evidenciado o vício — não o desgaste natural gerado pela fruição ordinária —, poderá o consumidor enjeitá-lo, desde que o faça dentro do prazo decadencial de 90 dias a contar de seu aparecimento, o qual será suspenso pela reclamação do vício junto ao fornecedor ou pela instauração de inquérito civil (artigo 26, § 2º, CDC).
Ademais, frustrada a tentativa de sanação do vício, e já em um segundo nível de tutela, para além da possibilidade de redibir o contrato ou de pleitear o abatimento do preço — alternativas que vigoram no Código Civil para vícios ocultos —, o CDC coloca à disposição do consumidor uma terceira opção, consistente na substituição do produto ou na reexecução do serviço (artigos 18, §1º, I, e 20, I, CDC). A nosso viso, sob o prisma do inarredável dever de cooperação e de informação quanto à mitigação de prejuízos, as três faculdades postas à escolha do consumidor se condicionam ao exercício anterior da interpelação ao fornecedor objetivamente documentada quanto à obrigação de fazer de efetivação dos reparos necessários na edificação sob pena de resolução do processo sem análise de mérito.
A questão relativa à decadência do direito de reclamar por vícios no imóvel não se confunde com o prazo prescricional a que se sujeita o consumidor para pleitear indenização decorrente da má execução do contrato. E, à falta de prazo específico no CDC que regule a hipótese de inadimplemento contratual — o prazo quinquenal disposto no artigo 27 é exclusivo para as hipóteses de fato do produto ou do serviço —, entende-se que deve ser aplicado o prazo decenal do artigo 205 do CC/02.
Com efeito, o fornecedor também se responsabiliza perante o consumidor por danos derivados da insegurança da obra. Enquanto o vício do produto ou serviço representa uma desconformidade em termos de frustração de legitima expectativa de qualidade, o defeito concerne a um acidente de consumo derivado de um produto ou serviço com periculosidade adquirida, que causa um dano ao consumidor, seja ele de natureza patrimonial ou extrapatrimonial (artigos 12 e 14, CDC). Frustrado o dever de incolumidade, tratando-se de obrigação objetiva de indenizar, bastará à procedência da pretensão a demonstração do nexo causal entre o defeito e o dano, aplicando-se o prazo prescricional de cinco anos para a ação reparatória do artigo 27 do CDC.
A normativa da responsabilidade civil tem como destinatário um magistrado, capaz de pacificar um conflito e através do princípio da reparação integral restaurar as partes, na medida do possível, ao estágio pré-dano. Em uma demanda versando sobre vícios construtivos surgem diversos cenários ressarcitórios. Entretanto, como se interpretará em cada litígio o critério da "razoável durabilidade do bem"? Deixaremos a cada magistrado e a cada perito judicial a tarefa de determinar a medida da responsabilidade de construtores e incorporadores nos mais variados contextos? A discricionariedade das decisões enseja desequilíbrio no mercado da construção, seja por abusos por parte de consumidores no exercício de suas faculdades, como pela reação natural de fornecedores através do encarecimento de preços e adição de entraves contratuais, contribuindo para um quadro de insegurança jurídica.
Talvez o caminho seja avançar para a
accountability, a fim de ampliar o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a
liability do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor com uma regulamentação voltada à governança, seja em caráter
ex ante ou ex post. Especificamente, no plano
ex ante a
accountability é compreendida como um guia para construtores e incorporadores, protagonistas da atividade, mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos capazes de planificar e mitigar riscos e solidificar uma cultura de gestão corporativa.
Nesse ponto se insere a NBR 15.575 da ABNT-2013, como uma normalização técnica, norma de desempenho capaz de atribuir critérios mínimos de mensuração de habitabilidade do imóvel, seja quanto à segurança, conforto e resistência de materiais para fins de determinação de vida útil. A norma técnica acrescenta parâmetros objetivos de
accountability, proporcionando uma função preventiva à responsabilidade civil. A referida NBR não é prescritiva, mas pavimenta procedimentos e indica resultados na medida em que uma construção documentada pelas melhores práticas atua como padronização que impede interferências sobre a vida útil do projeto. O atendimento às normas técnicas é um dever do profissional de investimento em
standards de integridade, constante do Código de Ética, e o seu cumprimento gera uma presunção de conformidade.
Em complemento, na vertente
ex post, a
accountability atua como um guia para o magistrado, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados. Se o caso concreto evidencia uma omissão às recomendações da NBR 15.575, pode-se alcançar uma presunção da configuração do vício construtivo. O investimento em
compliance à regulação por parte do fornecedor, com efetividade, poderá mesmo servir como fator de redução da indenização, espécie de sanção premial, a teor do parágrafo único do artigo 944 do Código Civil.
A seu turno, o vocábulo
responsibility diz respeito ao sentido moral de responsabilidade, voluntariamente aceito e jamais legalmente imposto. É um conceito prospectivo de responsabilidade, no qual ela se converte em instrumento para autogoverno e modelação da vida que envolve um sentido de solidariedade. Para o incorporador e o construtor isso requer que a atividade exercitada seja proativa, diligenciando-se no sentido de efetuar pormenorizados laudos de conclusão de obra e laudo de impacto da obra sobre a vizinhança, além de um laudo de auditoria de manutenção, que servirá como ponto de partida para a fase de responsabilidade pós-contratual da obrigação de resultado da entrega da construção. Nesse ponto, o fornecedor de produtos e serviços exerce a chamada "função promocional" da responsabilidade civil, tendo em vista que a sua credibilidade institucional é um fator imaterial determinante em uma economia de mercado.
A
responsibility transcende o fornecedor e alcança o adquirente da obra. No contexto da incorporação, o consumidor se coloca como coprotagonista do processo, em vez de eventual vítima de um vício construtivo. Com a emissão do laudo conclusivo da obra, a auditoria de manutenção inclui um
check list para cada condômino, a fim de que a construção mantenha o desempenho previsto. Ou seja, o usuário também se incumbe de contribuir com a manutenção periódica do prédio, assumindo a obrigação de não degradar a vida útil planejada para o projeto. A desídia na manutenção do uso conforme os padrões da norma técnica implica em exclusão do nexo causal em razão da ausência do vício construtivo ou do próprio fato exclusivo do consumidor.
A adição das camadas de
responsibility e accountability à
liability é capaz de ensejar uma ruptura paradigmática com a cultura da litigiosidade, propiciando uma compartilhada gestão de riscos quanto aos vícios construtivos. A credibilidade institucional é um fator imaterial fundamental para a sobrevivência de incorporadores e construtores. A construção de um prédio caminha ao lado da construção de um bom nome e reputação. A seu turno, consumidores incorporam a ideia de mitigação dos próprios riscos, bilateralizando o processo obrigacional com base em comportamentos conforme a boa-fé objetiva.
Fonte: Conjur